Meu tio da América
Theresa Catharina de Góes Campos
Editora do Notícias
Culturais (www.noticiasculturais.com), é jornalista,
escritora e professora universitária
Com "Meu tio da América" (Mon oncle d´Amérique - França,
1980), o diretor Alan Resnais deu a sua contribuição
magistral para um mundo melhor.
"A única razão de ser de um ser é ...ser. Conservar a sua
estrutura."
Para os que consideram o cinema apenas uma diversão
superficial e sem maiores efeitos, as palavras acima
pareceriam um texto de obra filosófica. Estariam enganados,
porém. Aquele pensamento, expresso em vocábulos
aparentemente muito simples, mas de profunda significação, é
a citação inicial que se apresenta ao público na introdução
do filme "Meu tio da América". Com esse impacto verbal, Alan
Resnais revela de imediato a sua intenção, como diretor de
uma obra que precisa e merece ser vista muitas e muitas
vezes, tais os benefícios que pode trazer para a vida de
cada um e da sociedade em geral, sem restrição de tempo ou
espaço.
Sendo a originalidade a marca de sua carreira
cinematográfica, o cineasta aborda os mecanismos da memória
(como fez em "Providence") e o paralelismo de épocas
diversas (como em "O ano passado em Marienbad") de maneira
bastante especial, criativa na forma e no conteúdo, e
transbordante de informação e reflexão crítica.
"O filme surpreende, desafia, aguça a sensibilidade e
convida à reflexão, mas tudo isso numa linha bem-humorada,
rara num realizador em geral monopolizado pelos mais
angustiantes debates em torno da condição humana. Tratando
seus personagens como instrumentistas de uma orquestra de
câmara, Resnais abre mão do comando que poderia exercer
sobre eles - e que exerceu sobre os personagens de seus
outros filmes - para observá-los, divertido, complacente, um
pouco à maneira de Truffaut.
Essa liberdade de ação se combina à beleza de imagens
requintadamente construídas, como é sua marca registrada,
tornando o filme leve, fluido, belo em todos os sentidos. As
interpretações de Gérard Dépardieu, em seu melhor desempenho
até hoje, de Nicole Garcia e Roger Pierre contribuem para
que "Meu tio da América" se defina como obra-prima."
(transcrição de texto reproduzido pela Fundação Cultural do
DF, sem indicação de autoria, e distribuído ao público no
Cine Brasília).
"Mon oncle d´Amérique" divulga a teoria científica do
biólogo Henri Laborit, exemplificando-a pela ficção - a
história de dois homens e uma mulher, de cidades e origens
sociais e familiares diversas, da infância à idade adulta.
Enfatiza a influência da família, das recordações infantis,
dos jogos e das atividades iniciais. Destaca a importância
do meio ambiente no desenvolvimento de personalidades e
atitudes.
Voltando a citar o prólogo do filme (Prêmio Especial do Júri
no Festival de Cannes de 1980): "As plantas passam a vida
toda no mesmo lugar, sem se deslocar, extraindo do solo em
que estão tudo de que necessitam para viver."
Com a sua construção visual colorida (na qual também inseriu
imagens em preto e branco), Alan Resnais aborda o problema
da dificuldade de adaptação às constantes mudanças da vida
atual, a relutância na aceitação da nova realidade
sócio-econômica (exemplificado na figura do administrador de
uma pequena empresa, quando esta é absorvida por uma grande
companhia, com novas idéias, novos métodos e direção nova).
Isolado da família (que não se mudou com ele para o local da
nova função, que lhe foi imposta sem alternativa de recusa
ou outra opção qualquer...), tenso, sentindo-se rejeitado e
humilhado, sem saída, o marido e pai gourmet , apesar de
aparentar ser fisicamente forte, tenta suicídio. Ora, logo
nos seus primeiros momentos, "Meu tio da América" enuncia
uma definição que precisamos apreender para conseguirmos
sobreviver com dignidade e em consonância com o nosso
potencial:
"Angústia é a impossibilidade de se controlar uma situação."
As idéias, experiências e conclusões do cientista Henri
Laborit, divulgadas pelo filme, candidato ao Oscar de 1981
(melhor roteiro), sobre os conflitos sociais, motivam
análises mais profundas: trata-se da luta pelo poder, uma
luta que não respeita os direitos dos outros e provoca
conflitos. Revela-se a guerra, então, como a ambição da
propriedade sem restrições e sem limites, por qualquer meio,
inclusive o violento, agressivo.
"Meu tio da América" aponta a presença dos outros em nós:
nós somos os outros, que atuam sobre nós, que nos
influenciam de um modo ou de outro. Daí ser um filme atual e
permanente - universal. Os personagens são hodiernos: a
atriz independente e liberada que, depois de conquistar um
alto funcionário público (casado e pai de um casal de filhos
menores), vê-se cuidando das crises de angústia e úlcera que
ele passa a ter; uma atriz que, mais tarde, será enganada
pela dramatização e astúcia (o amor?) da esposa traída que a
procura para lhe pedir que permita ter de volta o seu
marido, pois ela está sofrendo de uma doença fatal e tem
pouco tempo de vida...Assim, a amante o abandona e o casal
se reconcilia. Na sua solidão, tentando compreender o que
ocorrera em sua vida particular, a atriz -transformada por
necessidade em desenhista de modas - procura o seu ex-amante
e a família dele, descobrindo, finalmente, que fora
ludibriada. E a esposa, vitoriosa, ainda lhe diz que, se não
fosse a sua ajuda (dela, esposa), o marido não teria escrito
o livro sobre o sol que há muito planejava publicar.
Entre as cenas de experiências profundamente humanas,
intercalam-se experiências laboratoriais com ratinhos,
quando Laborit ilustra com muita ênfase os efeitos altamente
perigosos da angústia, do stress, enfim, da tensão que nos
fere intimamente e provoca úlceras, câncer, e muitos outros
males e distúrbios funcionais, a nosso organismo tão
sensível e frágil. Como não podemos reagir violentamente
contra os outros que nos desagradam, ou ferem, ou irritam ou
nos contrariam, escolhemos, erradamente, ser agressivos
contra nós mesmos. O suicídio, por conseguinte, é a agressão
máxima que se comete.
Material publicitário de "Meu tio da América" apregoa:
"O que os ratos brancos podem nos ensinar sobre a condição
humana."
De acordo com as estatísticas mais recentes, o número de
suicidas vem aumentando assustadoramente, no mundo inteiro,
em todas as faixas etárias (até crianças e adolescentes se
angustiam a ponto de perderem a esperança!) e condições, mas
a idade dos que se suicidam está baixando!
A solução começa, é claro, na compreensão de que o problema
existe e que a angústia precisa ser considerada como um
ponto de partida para se encontrar uma saída positiva,
humana, ainda que se recorra a uma alternativa, adaptação,
ou a um redirecionamento de nossos interesses e objetivos.
Daí a importância da criatividade - cuja definição, aliás,
é, segundo cientistas da NASA que se pronunciaram a
respeito, a capacidade de se resolver problemas. Sobreviver
é nossa obrigação para com a vida que existe em nós.
Precisamos realizar nosso potencial, conservar nossa
estrutura, enfrentando e vencendo os obstáculos, sem deixar
que a angústia nos domine, asfixie e nos leve à destruição.
Um dos trechos mais importantes de "Meu tio da América"
comenta que, na hipótese de uma criança ser criada numa
floresta, entre os animais, sem nenhum contato com outro ser
humano, ainda que se desenvolvesse fisicamente, jamais seria
um homem no sentido exato da palavra, devido à ausência do
contato humano, pois é a comunicação com outras pessoas que
possibilita a plena realização do ser humano. (Ver o filme
"O garoto selvagem", de François Truffaut; ler meu
comentário.)
Infelizmente, nem todos sabem apreciar essa obra-prima (a
que TODOS DEVERIAM ASSISTIR!, por ser um filme que nos
ensina a viver, nos faz refletir sobre nós mesmos, sobre a
nossa sobrevivência pessoal, sobre a nossa realização como
indivíduos inseridos em um contexto social...) do cinema
contemporâneo europeu. Isto porque a comunicação de massa de
baixa qualidade e o ritmo atual da vida nas metrópoles
contribuem para a uniformização do espectador num estado de
embotamento intelectual que se nega a pensar, raciocinar,
refletir e, sobretudo, aprender, quando isto exige uma certa
dose de concentração e esforço. O hábito de assistir a
programas repetitivos e fáceis, no conforto de seu lar, sem
nenhum esforço para selecionar outras produções de maior
profundidade e de nível mais elevado, realizadas
inteligentemente sobre assuntos sérios, filosóficos ou
científicos.
Assim, uma janela cultural é fechada previamente pelo
espectador que não busca seu aperfeiçoamento intelectual
através da diversão caracterizada pela excelência de
qualidade. Aos poucos, ele vai perdendo a capacidade de ler
com rapidez as legendas e apreender o significado de um
roteiro mais complexo, hermético ou simbólico.
Conseqüentemente, os que se acostumam à mediocridade, talvez
durmam ou se retirem da sala de projeção na primeira parte
do magistral "Meu tio da América", reclamando:
"- Não sabia que era documentário" , ignorando que os
gêneros artísticos nem sempre são rígidos ou limitados na
sua criatividade, alienados quanto à possibilidade do cinema
divulgar pensamentos, ensaios e relatórios científicos por
meio da ficção dramática.
Mesmo entre aqueles que assistem ao filme até o fim, ainda
encontramos os que, honestamente, perguntam:
"- Por que o título?! Não tem nada a ver!"
Mas é claro que tem a ver! A mensagem do "tio da América"
está explícita, em um determinado momento da película,
quando o público fica sabendo que era um parente citado
porque decidira se mudar para a América e continuava pobre.
A família repetia a história toda vez que alguém pensava em
efetuar qualquer mudança em sua vida, em seu empenho para
resistir a qualquer interferência na sua rotina tradicional.
Todavia, a criança já percebia que era um relato mal contado
e que o tio, na certa, enriquecera. O menino acreditava que
o "tio da América" possuía realmente um tesouro, escondido
em algum lugar... e, como acontece com todo tesouro, merecia
ser procurado sem esmorecimento. É bem verdade que, em se
tratando de símbolos e mensagens profundas, as leituras dos
espectadores podem ser diferentes, pessoais... o que se
constitui, portanto, em mais uma riqueza do filme. Quanta
simbologia em um simples título! E como é importante que um
título leve à reflexão e se revele aos poucos, devagar,
gradualmente, desvendado lentamente, esclarecido pela mente
e pela sensibilidade maravilhosa do coração humano!
Durante a projeção e ao término da sessão, percebemos que
precisamos rever "Meu tio da América" ... para que possamos
nos lembrar e compreender melhor os diálogos, a narração, as
imagens. E que mais se poderia exigir de um filme, quando
provoca, nos espectadores, a necessidade e o desejo de vê-lo
mais vezes?! |