TEXTOS CULTURAIS


Formas Breves

A pena e o punhal

José Castello (24/01/2004)

 A crítica literária é a forma moderna da autobiografia, afirma o escritor argentino Ricardo Piglia. "A pessoa escreve sua vida quando crê escrever suas leituras. O crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos que lê". Foi com essa postura, cindido entre o rigor crítico e as projeções imaginárias, que Piglia escreveu os ensaios reunidos em "Formas breves" (Companhia das Letras, 118 páginas). Ensaios no sentido clássico, de tentativas, experimentos. Punhaladas brevíssimas, mas contundentes, desferidas sobre o frouxo cenário da literatura contemporânea.

Piglia - que é também, como todos sabem, um estupendo ficcionista - é um crítico rigoroso, erudito, ousado, mas nem por isso se esquiva, em momento algum, de tratar o ensaio como um gênero criativo. E, portanto, de exercê-lo como um ofício que arrasta em seu bojo as ilusões, as marcas, o coração de quem o escreve. Ele adverte: "Neste livro, trabalhei com narrativas reais e também com variantes e versões imaginárias de argumentos existentes". Um escritor, mesmo o mais severo, não pode se livrar da imaginação. Em vez de lutar contra ela, como se fosse um sinônimo de mentira, ou de falsificação, Piglia a aceita e a inclui em seu esforço crítico.

Ele recorda, a propósito, a célebre sentença de Faulkner a respeito de seu romance "O som e a fúria": "Escrevi este livro e aprendi a ler". Todo escritor, exerça a ficção, a poesia, ou a crítica, se surpreende, sempre, com o que escreve. E, inevitavelmente, altera sua própria imagem quando se debruça sobre o que escreveu - para ali, no traço das palavras, examinar sua imagem refletida. Ninguém escreve impunemente: a escrita tem esse poder catalisador, que processa objetos para transformá-los em objetos diferentes, atributo que aponta para o grande perigo que se guarda na literatura.

O bom crítico deve saber, antes de tudo, que é muito difícil, senão impossível, definir e enquadrar um grande escritor. Piglia recorda certa tarde em que um amigo lhe mostrou fotografias do velório do escritor argentino Roberto Arlt, que morreu precocemente aos 42 anos, em 1942, deixando uma obra que até hoje resiste a qualquer tentativa de ajuste. O caixão foi armado no próprio quarto de Arlt, que era um homem imenso. Na hora do translado para o cemitério, ele não passava pela porta e tiveram que içá-lo com roldanas e retirá-lo pela janela. "Aquele caixão suspenso sobre Buenos Aires é uma boa imagem do lugar de Arlt na literatura Argentina", Piglia comenta. Pairando acima de cidade, improvável e imenso, o corpo de Arlt movia-se também muito acima do cenário literário argentino, como se não pudesse haver uma relação, ou acordo, entre os dois. Piglia toma a cena como a metáfora mais adequada para uma obra que, até hoje, resiste a qualquer tentativa de canonização. "Há um e stranho desvio na linguagem de Arlt, uma relação de distância e de estranheza com a língua materna que é sempre a marca de um grande escritor", ele anota.

Na literatura contemporânea, de fato, as narrativas tendem, em geral, ao enquadramento instantâneo, quando não ao congelamento. Como se um escritor pudesse ser visto, por vezes, como o "genérico" de outro. São filiações forçadas, agrupamentos compulsivos, verdadeiras torturas. Até as experiências de vanguarda, Piglia nos adverte, para cortar pela raiz qualquer entusiasmo juvenil, já se transformaram num gênero literário, isto é, num projeto fechado e previsível. Ele comenta a propósito: "A vanguarda é uma das ideologias espontâneas de todo escritor. Se ser de vanguarda quer dizer ser moderno, todos nós, escritores, queremos ser de vanguarda. A modernidade é o grande mito da literatura contemporânea". Essa busca do moderno a qualquer preço se transformou, contudo, num gênero literário, tão previsível quanto os velhos romances de espionagem, ou de terror. "Neles existe uma maneira cristalizada, tão plena de convicções e de regras, que se poderia escrever um romance de vanguarda com a mesma facilidade com que se pode escrever, por exemplo, um romance policial".

Para Piglia, mesmo a "obra-prima" literária se converteu num gênero fixo, no qual o escritor se enreda e se asfixia. Todos as ficções parecem tender, hoje, à fixidez e à mumificação. E é a essa compulsão à atrofia que o escritor deve se opor com toda a obstinação.

Ao contrário dos vanguardistas de escola, um escritor como Roberto Arlt não pode ser mensurado, ou classificado, já que escreveu suas ficções numa língua estranha e marginal. Arlt, nos diz Piglia, é um escritor inútil a todo esforço de domesticação. Seria o mesmo caso do polonês, radicado por muitos anos na Argentina, Witold Gombrowicz. Para Piglia, a Argentina serviu a Gombrowicz como um laboratório no qual ele pôde experimentar suas teses a respeito das línguas marginais e das culturas secundárias. Desse modo, ele pôde lidar com a mesma questão proposta por Borges: "Como chegar a ser universal neste subúrbio do mundo? Como safar-se do nacionalismo sem deixar de ser argentino?"

A tese de Borges é a de que literaturas secundárias e marginais como a argentina - e a brasileira, podemos acrescentar - têm a possibilidade estupenda de dar às grandes tradições literárias um tratamento irreverente. O lugar incerto ocupado pelos escritores sul-americanos lhes permite fazer um uso específico da herança cultural que herdaram. Eles estão aptos a trabalhar, Piglia enumera, com "os mecanismos de falsificação, a tentação do roubo, a tradução como plágio, a mescla, a combinação de registros, a barafunda de filiações". Essa - a falsificação - é sua tradição. Em conseqüência, a estranheza se torna sua marca. Ao menos daqueles que sabem desconfiar dos gêneros de museu.

Nesse ponto, Piglia recorda a famosa anedota contada por Borges, que afirmava que o primeiro livro que leu em sua vida foi uma versão do Quixote para o inglês. Quando, mais tarde, veio a ler a versão original do Quixote, em espanhol, Borges pensou que se tratava só de uma tradução ruim. A anedota (da qual se deve desconfiar, como da maior parte das lembranças de Borges) serve a Piglia para falar do lugar fronteiriço que a literatura pode ocupar. É nesse cruzamento de duas línguas e de duas tradições que escritores como Arlt, Gombrowicz e Borges sempre trabalharam. Desse modo, expostos à contaminação e à irregularidade, eles fizeram sua obra. Da leitura desses escritores argentinos, Piglia conclui ainda que "toda tradição é clandestina, se constrói retrospectivamente e assume a forma de um complô". Escritores trabalham secretamente (na maior parte das vezes, com segredos que eles mesmos desconhecem). Para compor a própria identidade, retraçam o passado a seu modo, fazendo alterações e deformações com a maior sem cerimônia. E, agindo assim, agem como conspiradores que, na calada da noite, inseminam perturbação e confusão onde, até ali, só havia repetição.

Macedonio e Gombrowicz, dois dos maiores escritores argentinos, por exemplo, viveram na mesma época, na mesma Buenos Aires, ambos isolados em paupérrimos quartos de pensão, "certos de seu valor, mas indecisos quanto ao futuro de suas obras". Piglia supõe que, apesar disso, Macedonio leu o Ferdydurke, o romance que Gombrowicz (o escritor polonês, e ainda não escritor argentino) escreveu em polonês, e depois "traduziu" para o espanhol. "E quanto a Gombrowicz, era sem dúvida o único leitor possível do Museu do romance da Eterna, o único, quero dizer, à altura do projeto macedoniano", acrescenta. É claro, há nessa tese de Piglia não só um exagero, mas uma fantasia pessoal. Ele trata os dois escritores como seus personagens, apropria-se de suas figuras para manipula-las a seu favor; e é dessa maneira que constrói não só sua própria crítica, mas sua própria tradição.

É assim, apostando em suposições, traçando filiações ocultas, e até delirando sobre personagens reais que Ricardo Piglia exerce a crítica literária - a imaginação sempre incluída, sempre no centro do pensamento crítico. Desse modo, a crítica reafirma aquilo que já é: um gênero literário, tão digno e inventivo quanto o romance, ou a poesia. E que, tanto quanto qualquer gênero literário, traz o centro borrado pelo veneno da fantasia. Na literatura, Piglia acrescenta, os pensamentos podem ser tão difíceis e tão sofisticados quanto numa obra filosófica, mas com a condição de que pareçam falsos. "Essa ilusão da falsidade é a própria literatura". Na literatura, dizia Macedonio, podem-se expressar pensamentos complexos, mas sob a condição de que eles ainda não tenham sido pensados. Em outras palavras: sob a condição de que se pareçam com invenções, ou melhor, que sejam, eles próprios, fantasias.

Piglia nos traz, a propósito, uma recordação infantil -- que pode, ela também, ser falsa, o que não importa uma vez que, rememorada pelo escritor, ela vem operar a seu favor. Ainda menino, a mãe o levou para assistir à montagem de um drama rural, encenado numa tenda. A companhia teatral estava acampada num terreno baldio próximo a sua casa. Como não dispunham de cadeiras, a mãe de Piglia prontificou-se a emprestar aos atores algumas cadeiras de sua sala. Elas foram colocadas no centro do palco. "Para mim, a presença daqueles móveis familiares tirava toda a verdade da representação", o escritor recorda. As cadeiras de casa roubavam a falsidade da representação - falsificação que, na arte, é, paradoxalmente, a principal condição de verdade.

Formas breves traz, entre outras preciosidades, as já célebres "Teses sobre o conto" de Piglia. Segundo ele, um conto sempre conta duas histórias. No conto clássico, à moda de Poe, o artista narra em primeiro plano a história 1, e constrói em segredo a história 2. Tomando o conhecido exemplo de Tchekhov, registrado em seus cadernos de notas, uma anedota simples sintetiza o que é um conto: "Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa e se suicida". A forma clássica do conto está condensada nessa frase-relato. Enquanto o conto clássico trata da primeira história (a ida ao cassino) e deixa a segunda história (o suicídio) em segredo, para aparecer no desfecho com toda a claridade, no conto moderno essa segunda história (a do suicídio) é contada de modo sempre alusivo e nunca claro e conclusivo. É a célebre "teoria do iceberg", de Hemingway, segundo a qual "o mais importante nunca se conta".

Existem muitas variações dessa fórmula, e elas exemplificam as inúmeras possibilidades oferecidas a um contista. Kafka, por exemplo, numa inversão, relatava com clareza e até dureza a história secreta (o suicídio), enquanto narrava sigilosamente a história visível (a ida ao cassino), até convertê-la num enigma. "Essa inversão funda o kafkiano", Piglia comenta. No caso de Borges, a história secreta era sempre a mesma, enquanto a história aparente variava, não só de conteúdo, mas de gênero. Seja como for, diz Piglia, o conto é sempre construído "para revelar artificialmente algo que estava oculto". Para dotar a definição formulada por Rimbaud: "A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa remota terra incógnita, mas no próprio coração do imediato".

Piglia analisa, ainda, a relação, sempre cheia de conflitos, que a literatura tem com a psicanálise. "Os escritores sempre sentiram que a psicanálise falava de algo que já conheciam e sobre o qual era melhor manter-se calado", ele diz. As duas, literatura e psicanálise, cuidam da voz secreta que todos carregamos, murmúrio que só pode ser acessado com imensa paciência. "Sobre essa situação de espera sutil, os escritores sentiram que a psicanálise avançava como um louco furioso", ele descreve. Daí a tensão entre psicanálise e literatura, como dois bichos em fúria, disputando um mesmo território. Piglia recorda, ainda, o caso extremo de Joyce, que usou a psicanálise como chave de sua obra. Teria sido ele, até aqui, o escritor que melhor soube se apropriar da psicanálise, não porque se interessasse pelos conteúdos das teses freudianas, mas por nelas encontrou "um modo de narrar". Tanto para a literatura à moda de Joyce, como para os psicanalistas, o modo de narrar não corresp onde, nunca, a uma lógica linear. Psicanálise e literatura, nesse caso, se encontram no terreno do ilógico. Tanto que, quando perguntavam a Joyce sobre sua relação com Freud, ele se apressava em responder: "Joyce em alemão é Freud". Piglia esclarece: "Joyce (em inglês) e Freud (em alemão) querem dizer alegria e, nesse sentido, querem dizer o mesmo".

Para pensar as relações entre a literatura e a psicanálise, ele sugere, é bastante útil tomar como ponto de perspectiva o romance policial. Ambas, literatura e psicanálise, são investigações. Assim como os psicanalistas, os célebres detetives da literatura (Dupin, Sherlock Holmes, Marlowe) também tomam distância do real, dele se ausentam. "A vida noturna e algo perversa de Dupin, a cocaína de Sherlock Holmes, o álcool e a solidão de Marlowe" seriam, para Piglia, sinais de que detetives habitam um mundo à parte, distante de todas as rotinas e instituições. E só porque se distanciam do mundo comum, tornando-se "neutros", os detetives podem se arriscar a produzir interpretações. O mesmo se dá com os analistas.

"Formas breves" é um livro que se lê, ele mesmo, de maneira dispersa, saltando aqui, retrocedendo ali, sem nenhuma pretensão de eficácia e de coerência, produzindo a mesma sensação de flutuação gerada pelas grandes narrativas. Os psicanalistas falariam da famosa "atenção flutuante", instrumento técnico de que se servem para caçar os sinais do inconsciente. Os escritores reduziriam tudo a sua postura clássica, de espera paciente do indizível, como a de um sujeito debruçado sobre uma cerca além da qual nunca se aventurou, sem o que nenhuma grande ficção pode surgir.

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