Duas Vidas
Arnaldo Jabor
Será que a opinião pública está tão interessada assim na visão
que Narcisa Tamborindeguy ou Adriane Galisteu têm da vida?
A julgar pelo espaço que mídia dedica a esse tipo de formador
(?????) de opinião, o Brasil virou um imenso Castelo de Caras.
Adriane Galisteu, após o seu casamento relâmpago, falou às
páginas amarelas de "Veja" e deu aula magna de insensibilidade,
egoísmo e... sinceridade! Estranha mistura, mas a moça tem razão
quando se diz sincera. Ela não engana, revela-se de corpo (e que
corpo!) inteiro, e o retrato que aparece é assustador!
Adriane teve uma infância atribulada, perdeu o pai aos 15 anos,
ainda pobre, e um irmão com AIDS quando já não era tão pobre.
"Eu não tinha um tostão, não tinha dinheiro para comprar um
pastel. Meu irmão estava doente. Minha mãe ganhava 190 reais do
INSS, meu pai já tinha morrido. Eu sustentava todo mundo e não
tinha poupança alguma."
Peço licença a Adriane, mas vou falar de outra infância triste
de mulher, a de Rosa Célia Barbosa. Seu perfil - admirável -
surgiu em recente reportagem da "Vejinha" sobre os melhores
médicos do Rio de Janeiro. Alagoana, pequena, 1m50cm, começou a
sua odisséia aos sete anos. Largada num orfanato em Botafogo,
Rosa Célia chorou durante meses. "Toda a mulher de saia eu
achava que era a minha mãe que vinha me buscar. Depois de um
tempo, desisti...".
Voltemos a Adriane Galisteu. Ela é rica, bem sucedida, e "nem na
metade da escada ainda". A escada, não deixa de ser uma boa
imagem para alguém que - como uma verdadeira Scarlet O´Hara de
tempos neoliberais (muito mais neo que liberais) - resolveu que
nunca mais vai passar fome. Até aí, tudo bem; mas é
desconcertante ver como o sofrimento pode levar à total
insensibilidade.
Pergunta a repórter a Adriane se ela faria algo para o bem do
outro: "Para o bem do outro? Não, só faço pelo meu bem. Essa
coisa de dar sem cobrar, dar sem pedir, não existe. Depois, você
acaba jogando isso na cara do outro." "Você nunca cede, então?"
"Cedo, claro que cedo. Já cedi em coisas que não afetam a minha
vida. Ele gosta de dormir em lençol de linho e eu gosto de
dormir em lençol de seda. Aí dá para ceder..."
Rosa Célia fez vestibular de medicina quando morava de favor num
quartinho e trabalhava para manter-se. Formou-se e resolveu
dedicar-se à cardiologia neonatal e infantil, quando trabalhava
no Hospital da Lagoa. Sem saber inglês, meteu na cabeça que
teria que estudar no National Heart Hospital, em Londres, com
Jane Sommerville, a maior especialista mundial no assunto.
Estudou inglês e conseguiu uma bolsa e uma carta da Dra.
Sommerville. Em Londres, era gozada pelos colegas ingleses por
causa de seu inglês jeca. Ganhou o respeito geral quando acertou
um diagnóstico difícil numa paciente escocesa, após examiná-la
por oito horas seguidas. "Ela falava um inglês ainda pior do que
o meu", lembra Rosa Célia divertida.
Adriane Galisteu está rica, mas não confia em ninguém, salvo na
mãe. Nem nos amigos. Vejam: "Eu não posso sair confiando nas
pessoas. Não tenho motorista, nem segurança, por isso mesmo. É
mais gente para te trair. Eu confio mais nos bichos do que nas
pessoas. Ainda existem pessoas que acham que eu tenho amnésia.
Muitas das que convivem comigo hoje já me viraram a cara quando
estava por baixo. Mas você pensa que eu as trato mal? Trato com
a maior naturalidade. Porque elas podem até me usar, mas eu vou
usá-las também. É uma troca."
De Londres, Rosa Célia iria direto para Houston, nos Estados
Unidos. Fora escolhida e convidada para a Meca da cardiologia
mundial. Futuro brilhante a aguardava. Uma gravidez inesperada
atrapalhou o sonho. Pediu 24 horas para pensar e optou pelo
filho, voltando ao Rio de Janeiro. Reassumiu seu cargo no
Hospital da Lagoa e abriu consultório. Mas todo ano viaja para
estudar. Passa no mínimo um mês no Children´s Hospital, em
Boston, trabalhando 12 horas por dia.
"Você gosta de dinheiro, (Adriane)??"
"Adoro dinheiro e detesto hipocrisia. Gasto, gosto de gastar,
gosto de não fazer conta, de viajar de primeira classe. Tem
gente que fala: esse dinheiro que ganhei eu vou doar... O meu eu
não dôo não. O meu eu dôo é para a minha conta. Eu adoro fazer o
bem, mas também tenho minhas prioridades: minha casa, minha
família. Primeiro vou ajudar quem está mais próximo. Mas faço
minhas campanhas beneficentes."
Rosa Célia atualmente chefia um sofisticadíssimo centro
cardiológico, o Pró-Cardíaco. Lá são tratados casos limite,
histórias tristes. O hospital é privado e caríssimo, mas ela
achou um jeito de operar ali crianças sem posses. Criou uma ONG,
passa o chapéu, fala com amigos, empresários. O seu Projeto
Pró-Criança já atendeu mais de 500, e 120 foram operadas.
"Sonhei a vida inteira e fiz. Não importou ser pobre, mulher,
baixinha, alagoana. Eu fiz."
Voltemos a Adriane Galisteu e esbarraremos, brutalmente, na
frustração. "Já tive vontade de viajar e não podia. Queria ter
um carro e não tinha. Queria ter feito uma faculdade e não tive
dinheiro. Não que eu sinta falta de livros, porque livro a gente
compra na esquina, e conhecimento a gente adquire na vida. Eu
sinto falta é de contar para os amigos essas histórias que todo
mundo tem, do tempo da faculdade".
Duas vidas, dois perfis fora da normalidade, matéria-prima para
os órgãos de imprensa. Mas qual é a mais valorizada pela mídia
hoje em dia? É fácil constatar e chegar à conclusão de que há
algo muito errado com a nossa sociedade. Pode ser até que o
leitor tenha interesse mórbido em saber o que as louras e
morenas burras ou muito espertas andem fazendo, mas a mídia não
deve limitar-se a refletir e a conformar-se com a mediocridade,
o vazio, o oportunismo e a falta de ética. Os órgãos de imprensa
devem ter um papel transformador na sociedade e, nesse sentido,
estaríamos melhor servidos se houvesse mais Rosas Célias nos
jornais, nas revistas e TVs que nos cercam.
Voltando ao Castelo de Caras, as belas Adrianes, Narcisas,
Lucianas, Suzanas ou Carlas, certamente encontrarão lá um
espelho mágico... Se for mesmo mágico dirá que Rosa Célia é mais
bela do que todas vocês.
(Arnaldo Jabor)
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