SER FELIZ
Juremir Machado da Silva
E tudo o que se pode. Mas nem sempre os outros deixam. São
tantas as recomendações: não se queixe, não conte vantagens, não
demonstre ressentimento, lute, não se deixe abater pelas
derrotas, não seja invejoso, não seja arrogante, ajude os
outros, seja humilde, não banque o dono da verdade, não seja
fútil, não seja pernóstico, pense nos outros... Cada um tem
tantas vontades e tantas limitações que a felicidade parece o
horizonte: quando mais a gente se aproxima dele mais ele se
afasta. Muitos se assustam com tantos imperativos categóricos e
não se atrevem mais a pôr a felicidade no colo numa tarde
qualquer de primavera. Mas a felicidade anda sempre por aí à
espera de um carinho. É certo que não se entrega para sempre,
porém encontra mil maneiras de satisfazer uma pessoa que esteja
disposta a correr esse risco.
Exatamente, um pouco de felicidade exige uma boa dose de risco.
Não se imagine, contudo, que correr riscos tenha algo a ver com
aventuras terrivelmente perigosas em campos minados. O maior
risco continua sendo o de se abrir para o mundo, fugir das
parcas certezas que nos prendem ao sofá como ao rochedo da
salvação e mergulhar no extraordinário do cotidiano. Por trás da
aparente banalidade do dia-a-dia esconde-se um universo
fantástico de pequenas grandes coisas. É difícil esquecer banho
de chuva de verão ou de mangueira em tardes de janeiro. A
infância, mesmo que os adultos tentem estragá-la, é um
reservatório de sonhos. Mais difícil ainda é ver que há,
felizmente, muito dos jogos infantis na vida dos adultos de
coração aberto às coisas simples.
Do futebol de sábado à tarde às rodas de amigos nos bares ou nos
parques, numa atmosfera de não está acontecendo nada, está
acontecendo o principal: a vida. A grande lição, sem preço, da
vida é sempre a mesma: seja autêntico. Brigue se tiver de
brigar, rompa se tiver de romper, não abra mão dos ideais, salvo
se eles se tornarem prisões dogmáticas ou armaduras do passado,
e perdoe quando chegar a hora, pois ela quase sempre chega. Eu
estava pensando nisso, domingo, atravessando a Redenção, quando
um mendigo me chamou. Tentei evitá-lo. Ele insistiu. Finalmente,
do alto dos meus preconceitos, certo de que me daria uma facada,
olhei para ele. Sorriu. 'Viu como esse raio de sol te
persegue?', perguntou. Não, eu não tinha visto. Estava pensando
na felicidade.
juremir@correiodopovo.com.br
Juremir Machado da Silva
Fonte: Correio do Povo
Data: 6/10/2004
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