Carta ao neto - Flávio Cavalcante
Carta ao neto
Meu neto,
Pelo o que você já me disse com o seu sotaque de anjo, percebo
que você me considera uma criança grandona e desajeitada, e me
acha, mesmo assim, seu melhor companheiro de brinquedos.
Pena que tenhamos tão pouco tempo para brincar, tão pouco porque
só sei brincar de passado, e você só sabe brincar de futuro.
E ainda estarei brincando de recordação quando você começar a
brincar de esperança.
Mas antes que termine o nosso recreio juntos, antes que eu me
torne apenas um retrato na parede, uma referência do meu genro,
ou quem sabe até uma lágrima de minha filha, quero lhe dizer meu
neto, que vale a pena.
Vale a pena crescer e estudar.
Vale a pena conhecer pessoas, ter namoradas, sofrer ingratidões,
chorar algumas decepções, e a despeito de tudo isso, foi por
causa de tudo isso, ir renovando todos os dias a sua fé e a
bondade essencial da criatura humana, e o seu deslumbramento
diante da vida.
Vale a pena verificar que não há trabalho que não traga sua
recompensa; que não há livro que não traga ensinamentos; que os
amigos têm mais para dar que os inimigos para tirar; que se
formos bons observadores, aprenderemos tanto com a obra do sábio
quanto com a vida do ignorante.
Vale a pena casar e ter filhos.
Filhos, que nos escravizaram com o seu amor.
Vale a pena viver nesses assombrosos tempos modernos, em que
milagres acontecem ao virar de um botão; em que se pode
telefonar da Terra para a Lua; lançar sondas espaciais, máquinas
pensantes à fronteira de outros mundos, e descobrir na humildade
que toda essa maravilha tecnológica não consegue, entretanto,
atrasar ou adiantar um segundo sequer a chegada da primavera.
Vale a pena meu neto, mesmo quando você descobrir que tudo isso
que estou tentando ensinar é de pouca valia, porque a teoria não
substitui a prática, e cada um tem que aprender por si mesmo que
o fogo queima, que o vinagre amarga, que o espinho fere, e que o
pessimismo não resolve rigorosamente nada.
Vale a pena, até mesmo, envelhecer como eu e ter um neto como
você, que me devolveu a infância.
Vale a pena, ainda que eu parta cedo e a sua lembrança de mim se
torne vaga.
Mas, quando os outros disserem coisas boas de seus avós, quero
que você diga de mim simplesmente isso:
"Meu avô foi aquele que me disse que valia a pena.
E não é que ele tinha razão!"
**Flávio Cavalcante**
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