A ditadura das telenovelas
Antonio Brasil
Ainda na série “revisitando a televisão brasileira”, gostaria de
acrescentar um breve “capítulo” sobre as nossas telenovelas. Insisto
que deveríamos parar e discutir essa tal “indiscutível qualidade” da
televisão brasileira. Podemos estar diante de mais um dos inúmeros
“mitos” nacionais que tendem a distorcer e subverter os nossos
valores e a nossa própria realidade.
Confesso que adoro televisão, mas detesto telenovelas. Não tenho
muita paciência para ficar assistindo durante meses à mesmíssima
história de sempre. Talvez seja porque gosto muito de cinema. Novela
na TV é o anticinema. Não existe nada menos cinematográfico do que
novelas. A linguagem cinematográfica está baseada em uma narrativa
de ação e fluxo constante de imagens. A nossa telenovela tem origem
na linguagem radiofônica. Insiste em um excesso de diálogos, planos
e contraplanos, enquadramentos visuais óbvios em narrativas ainda
mais óbvias e repetitivas. Com raras exceções, preferem o caminho
fácil do folhetim romântico.
Droga televisiva
Mas como justificar o sucesso? Assim como o telejornalismo,
provavelmente, existe uma falta de opções. Por outro lado, se
televisão causa dependência, a telenovela é a própria essência da
“droga” televisiva. A narrativa fragmentada em centenas de capítulos
não exige qualquer tipo de conclusão lógica. Tudo se repete de uma
forma segura e a audiência é mantida com doses homeopáticas de uma
trama sem qualquer surpresa. Em um país onde a realidade reserva um
excesso de surpresas, em sua grande maioria surpresas desagradáveis
e violentas, a previsivilidade e o marasmo da narrativa de uma
telenovela se tornam um porto seguro para milhares de
telespectadores. Pelo menos em algum lugar do Brasil, sabe-se o que
vai acontecer no dia seguinte e isso nos causa um grande conforto. A
apatia do telespectador dentro da rotina diária das telenovelas
ameniza a verdadeira montanha-russa de tantas más notícias.
Gastam-se milhões em cenários bonitos, atores talentosos e técnica
apurada para não se dizer absolutamente nada. As histórias se
repetem sempre. A desculpa é sempre a mesma: “folhetim é assim mesmo
e telenovela é folhetim eletrônico”.
Telenovelas disfarçadas
E dá-lhe novelas o dia inteiro.
Em nenhum outro país no mundo existem tantas telenovelas diárias
como no Brasil. A programação “acomodada”, preguiçosa e segura
reserva horários diversos para todos os tipos de novelas. Temos
velhas novelas requentadas no horário vespertino com o nome de “vale
a pena ver de novo”. Mas aqui entre nós, será que vale tudo mesmo?
Temos novelas para jovens alienados e estereotipados que nos
convidam a uma eterna e repetitiva vida que privilegia uma atitude
de “malhação”. Mas essa tal “malhação” não é um convite à crítica ou
reflexão de valores ou mesmo de educação. Não se malha nada sério
nessa novela para adolescentes. Muito pelo contrário. O verdadeiro
objetivo é educar o público jovem a continuar “dependente” do “pior”
da TV. A polêmica leve disfarça uma preocupação efetiva de
transformar o público jovem em consumidor de produtos e atitudes da
moda. A moda é muito importante para uma telenovela.
Mas também tem novela em horário nobre. O pobre do telejornal vira
simplesmente um “apêndice”, um rápido intervalo de realidade entre
duas novelas. A ficção, o sonho, o irreal e a total alienação
predominam em uma programação que privilegia as novelas em
detrimento de qualquer outra coisa. Pior ou melhor? Tanto faz. As
telenovelas na televisão brasileira dominam a programação de
qualquer maneira.
Mas também temos telenovelas “disfarçadas”. Reality shows como o Big
Brother Brasil ou a Casa de Artistas não passam de novelas diárias.
A única diferença é que conseguem ser mais baratas e ainda piores.
Em uma linguagem televisiva semelhante às novelas, esses programas
oferecem a mesma trama arrastada e previsível, mas são produzidos
com atores amadores. Eles representam os mesmos personagens
estereotipados das telenovelas com uma grande vantagem para as
emissoras de tv brasileiras: eles dispensam os roteiristas. A
narrativa dos reality também “vicia”, causa dependência, cria mitos
e garante uma audiência cativa com investimentos mínimos. A “rainha”
da televisão brasileira ainda é o lucro fácil e rápido garantido por
uma audiência passiva e conformada. Afinal, poderia ser pior.
Poderia haver mais programas de auditório.
Quer mais? No Brasil, também temos telenovelas disfarçadas de
minisséries. Perseguindo a mesma fórmula de investimento mínimo em
busca de grandes resultados, cria-se uma cultura de novelas para
todos, inclusive para as elites. Ninguém pode escapar da “ditadura
das telenovelas”. Assisti a alguns capítulos dessa revolucionária
mininovela psicodélica "Hoje é dia de Maria" e confesso que não
entendi nada. Era o próprio samba do “folclorista” doido. Uma
espécie de Magico de Oz sertanejo com uma enxurrada de personagens
que falavam uma língua estranha onde nada fazia muito sentido. Mas
para quem gosta de drogas e alienação, deve ter sido uma
“obra-prima”. Não entendi nada e fiquei meio tonto com tantas
alegorias. Mininovela com objetivos culturais consegue ser ainda
mais chata do que novela de verdade.
Líder em baixaria
Mas e o futuro? Será que tem gente no Brasil que não percebe essa
tal ditadura das telenovelas no Brasil? Será que tem gente que não
percebe que tem muita baixaria com nome ingênuo de “telenovela”?
Segundo dados divulgados pela campanha “Quem financia a baixaria é
contra a cidadania”, organizada pela Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara dos Deputados com o apoio de 60 entidades da
sociedade civil, a telenovela não é só líder de audiência, também é
líder em baixaria.
A novela das oito, Senhora do Destino, por exemplo, ficou em
primeiro lugar no último ranking. E olha que não faltam
“concorrentes de peso” nesse ranking como os programas do
apresentador João Kleber, Ratinho, Gugu e tantos outros “experts” em
baixarias em nosso país. Esses apresentadores e o excesso de novelas
medíocres, sem dúvida, promovem mitos nacionais perigosos como o tal
mito da “indiscutível” qualidade da televisão brasileira. Na hora de
cobrar apoio do governo ou exigir “independência”, as mesmas
emissoras brasileiras que só produzem baixarias com o nome de
telenovelas fazem questão de dizer que pelo menos produzem
“baixarias” nacionais.
No Brasil, em termos de televisão, somos reféns de uma linguagem
televisiva única. Somos reféns da “ditadura das telenovelas”.
10/02/2005
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