O Prazer das Palavras
Cláudio Moreno - 27/11/2004
Risco de vida
Um educado leitor escreve para estranhar que este jornal utilize a
expressão risco de vida, alegando que um professor de renome já
corrigiu este equívoco de uma vez por todas: "É risco de morte, pois
só pode correr risco de vida um morto que está em condições de
ressuscitar". Sinto dizer-te, meu polido leitor, mas não é bem assim
que funciona. A experiência me ensinou a suspeitar, de antemão, de
tais "descobertas" adventícias, feitas por essas autoridades que
aparecem para me anunciar, com aquele olhar esgazeado do homem que
viu a bomba, que eu estive cego e surdo todo esse tempo. Talvez não
saibas, mas o Brasil assiste agora a uma nova safra desses Antônios
Conselheiros da gramática: volta e meia, aparece um maluco disposto
a reinventar a roda e a encontrar "erros" no Português que já era
falado pela avó da minha bisavó e pelos demais antepassados -
incultos, cultos ou cultíssimos. O que esses fanáticos não sabem
(até porque, em sua grande maioria, pouco estudo têm de Lingüística
e de Gramática) é que, mesmo que a forma que eles defendem seja
aceitável, a outra, que eles condenam, já existia muito antes do dia
em que eles próprios vieram a este mundo para nos incomodar.
Os falantes do Português sempre interpretaram esta expressão como a
forma elíptica de "risco de perder a vida". Ao longo dos séculos,
todos os que a empregaram e todos os que a ouviram sabiam exatamente
do que se tratava: pôr a vida em risco, arriscar a vida. Assim
aparece na Corte na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo; nas
Décadas, de João de Barros; em Machado ("Salvar uma criança com
risco da própria vida...", Quincas Borba); em Joaquim Nabuco; em
Alencar; em Coelho Neto; em Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós;
na Bíblia, traduzida por João Ferreira de Almeida no século 17
("Ainda que cometesse mentira a risco da minha vida, nem por isso
coisa nenhuma se esconderia ao rei", II Samuel 18:13); e assim por
diante. Além disso, nossas leis falam em "gratificação por risco de
vida", o Código de Ética Médico fala de "iminente risco de vida" e o
dicionário do Houaiss, no verbete "risco", exemplifica com risco de
vida. E agora, meu caro leitor? Achas mesmo que o teu renomado
professor, se pudesse entrar em contato com o espírito de Machado ou
de Eça, teria a coragem de dizer-lhes nas barbas que eles tinham
errado durante toda a sua vida literária - e que ele estava só
esperando a oportunidade para dizer o mesmo para Camilo Castelo
Branco, Joaquim Nabuco e outros escritores que não tinham tido a
sorte de estudar na mesma gramática em que ele estudou?
Nota, porém, que a defesa que faço do risco de vida não implica a
condenação do risco de morte, que também tem seus adeptos - entre
eles, o padre Manuel Bernardes e o mesmo Camilo Castelo Branco, que,
nesta questão, acendia uma vela ao santo e outra ao diabo. Na
maioria das vezes, seu emprego parece obedecer a um critério
sutilmente diferente, pois esta forma vem freqüentemente adjetivada
(risco de morte súbita, de morte precoce, de morte indigna) ou
sugere uma estrutura verbal subjacente (risco de morte por
afogamento, de morte por parada respiratória, de morte no 1º ano de
vida, etc.) - ficando evidente a impossibilidade de optar por risco
de vida nessas duas situações. Como se vê, somos obrigados a
reconhecer que também é moeda boa, de livre curso no país, a única a
ser usada em determinadas construções - mas não é um substituto
obrigatório do consagradíssimo risco de vida. Aliás, a disputa entre
as duas formas não é privilégio nosso, pois ocorre também no Inglês
(risk of life, risk of death), no Espanhol (riesgo de vida, riesgo
de muerte) e no Francês (risque de vie, risque de mort).
O equívoco da renomada (famigerada?) autoridade que mencionas,
prezado leitor, foi acreditar ingenuamente que a nossa língua existe
para expressar nosso pensamento, devendo, portanto, obedecer aos
critérios da lógica - teoria que andou muito em voga lá pelo final
do século 18 e que foi abandonada junto com a tabaqueira de rapé e o
chapéu de três bicos. Por este raciocínio, se enterro um prego na
madeira e enfio a linha na agulha, não poderia enterrar o chapéu na
cabeça e enfiar o sapato no pé (e sim a cabeça no chapéu e o pé no
sapato...); um líquido ótimo para baratas deveria deixá-las alegres
e robustas, e não matá-las. A língua não pode estar submetida à
lógica porque é incomensuravelmente maior do que ela, já que lhe
cabe também exprimir as emoções, as fantasias, as incertezas e as
ambigüidades que recheiam o animal humano. O Português atual,
portanto, é o produto dessa riquíssima mistura, sedimentada ao longo
de séculos de uso e aprovada por esse plebiscito gigantesco de 900
anos, que deve ser ouvido com respeito e não pode ser alterado por
deduções arrogantes e superficiais.
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