Amar o inimigo
Frei Betto
Com certeza, o mais desafiante mandamento de Jesus é amar o inimigo
(Mateus 5, 44). Gustavo Gutiérrez, pai da Teologia da Libertação,
costuma dizer que, para ser bom cristão, é preciso ter ao menos um
inimigo, sem o que não se pode cumprir o preceito de Jesus. Muitos
se perguntam como é possível ter amor a uma pessoa que me tem ódio
ou me provoca sentimentos irados? Talvez a resposta esteja neste
gesto de grandeza humana que relato abaixo.
Todos se recordam do alcance mundial das temporadas em que trechos
de óperas e clássicos do canto lírico reuniam três das melhores
vozes do mundo: os tenores Luciano Pavarotti, da Itália, e os
espanhóis Plácido Domingo e José Carreras.
De repente, o trio se calou. E isso aconteceu muito antes de
Pavarotti decidir se aposentar. O que teria ocorrido?
Domingo é madrileno, Carreras, catalão, e quem conhece a Espanha
sabe da rivalidade que existe entre os habitantes das regiões de
Madri e Barcelona. Mas não foi isso que afastou os dois tenores. Em
1984, eles tiveram uma forte desavença política. Não mais se
falaram. E seus respectivos contratos passaram a exigir a ausência
do desafeto nas apresentações públicas.
Em 1987, Carreras constatou que sofria de leucemia. Na Espanha,
surgem cerca de 4.000 novos casos da doença por ano. O tenor
submeteu-se ao transplante de medula óssea, a transfusões de sangue
e a freqüentes viagens aos EUA, para tratamento. Sem poder cantar e
cumprir os contratos, viu a sua fortuna consumida pelos cuidados de
saúde.
Quase sem recursos, Carreras soube que havia em Madri uma
instituição destinada à recuperação de pessoas com leucemia, a
Fundação Hermosa. Entrou em contato, recebeu todo o apoio, curou-se
e voltou a cantar. Graças aos seus altos cachês, refez as suas
economias e decidiu doar parte de sua fortuna à obra da fundação,
inscrevendo-se como colaborador permanente. Ao receber o contrato de
adesão e ler os estatutos, constatou, surpreso, que o presidente da
Fundação Hermosa e seu principal benfeitor chamava-se Plácido
Domingo.
Ao investigar mais a fundo, o tenor catalão descobriu que Hermosa
havia sido fundada para cuidar especialmente de um único enfermo:
José Carreras. Plácido Domingo decidira preservar seu anonimato para
não constranger o colega a aceitar a solidariedade de um inimigo.
Carreras viajou a Madri e compareceu a um espetáculo de Domingo.
Subiu ao palco, interrompeu a apresentação, ajoelhou-se aos pés dele
e agradeceu-lhe publicamente o seu restabelecimento. Inspirado no
exemplo de Domingo, pouco depois Carreras inaugurou, em Barcelona, a
Fundação Internacional José Carreras para a Luta contra a Leucemia (info@fcarreras.es).
Mais tarde, um jornalista perguntou a Plácido Domingo por que havia
criado a Fundação Hermosa para beneficiar um inimigo e concorrente
nos palcos. O tenor madrileno respondeu: “Uma voz como a dele não
pode calar”.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de
"Mística e Espiritualidade" (Rocco), entre outros livros.
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