CINEMA E EDUCAÇÃO
(Adaptação do livro de Irene Tavares de Sá)
Todo homem nasce para se realizar como pessoa humana. Quando isso
não ocorre, uma boa parte da responsabilidade recai sobre os
educadores. Porque a educação pode contribuir decisivamente para que
surja um ser humano frustrado, ou realizado.
O cinema pode ser um instrumento útil e eficaz nas mãos do educador
que souber aproveitar-lhe as múltiplas possibilidades, graças à
variedade de seus gêneros e seus extraordinários recursos técnicos e
artísticos. Recomendamos a organização de cineclubes, pois os mesmos
contribuem para que o educando assuma uma posição de crítica,
fornecendo-lhe meios de avaliar, de julgar um determinado filme,
mostrando-lhe a sua beleza e os ensinamentos que transmitiu. O
educador deve ter um caloroso entusiasmo pelo cinema, como elemento
integrante da nossa cultura contemporânea. O seu critério, ao julgar
um filme, obedecerá à seguinte orientação: “Em que medida este filme
contribui para algum daqueles aspectos que garantem o enriquecimento
da personalidade?”
“O homem que Inventou o Judô”, filme premiado pelo seu alto valor no
Festival de Cinema, no Rio de Janeiro, em 1965, apresentou uma
linguagem incisiva e eficaz, ao condenar a violência e exaltar os
valores autênticos. Relata a vida do homem que divulgou o judô como
esporte humano, submetendo as ações a rigoroso treinamento do
espírito.
Nos cineclubes, os participantes têm a oportunidade de ver destacada
a mensagem de cada filme, seja positiva ou negativa, com suas
implicações sociais, suas aplicações históricas, seus paralelos,
etc. O cinema presta-se então a uma conversa instrutiva.
“Do Outro Lado da Ponte”, de Le Roy, conta-nos a história de um
diálogo de entendimento entre as raças: uma americana e um japonês,
que perderam seus filhos na Segunda Guerra Mundial e que, apesar de
tudo, sabem “atravessar a ponte”, criada pelo ódio e pela
incompreensão. O tom, a atmosfera, o requinte da forma, a excelente
interpretação, tudo concorre para criar um halo de luz e calor tão
necessários às relações humanas.
A educação deve visar a uma lenta e progressiva integração na
realidade. Muitos filmes ajudam a ver e a compreender a complexa
engrenagem do comportamento humano, com suas contradições, através
de obras realizadas, simples e confusas, pretensiosas ou autênticas.
Escolhamos o melhor e ensinemos a ver, a distinguir, a apreciar
devidamente, a aprender. Toda mensagem contém algum elemento
estimulante para a inteligência e para a imaginação: pode dirigir-se
também à sensibilidade e ativar a vontade. A mensagem principal
preside e unifica o enredo.
Tomemos um filme hindu – “Mãe Índia”, exemplo da produção de um dos
países que se acham à frente do cinema mundial, com mais de duzentos
filmes por ano. Apesar do teor nativista e folclórico de muitas de
suas fitas, temos nesta uma montagem de tipo universal. É a vida, a
miséria e a dignidade de um povo, passadas em revista através das
evocações da anciã que preside à inauguração de um canal irrigatório
em sua aldeia. Encontram-se o presente e o passado, o progresso e a
intemporalidade. Trata-se de um personagem simbólico, personificando
a continuidade da família e de todos os valores que defende –
tradições, ideais e sofrimentos. A velha mãe presidindo um
empreendimento vital para a comunidade. Nela integrada, dela
recebendo sua cota de dores e alegrias; guardiã de tradições
respeitadas a todo custo – ao preço de todos os sacrifícios. O valor
da terra e sua importância para a família – a nova família que se
forma... Apego ao solo ingrato que se recusou sempre a abandonar e
que recebe, com a inauguração, uma promessa de fertilidade... Quem
melhor do que a figura da mãe, envelhecida na luta pela
sobrevivência do passado e do futuro, para simbolizar isso tudo no
presente? Quantas motivações não contém um filme como esse?
Suscitando observações sobre tantos aspectos duma civilização
milenar, tão rica por sua vez em poesia e simbolismo, ao lado de
problemas tão graves – subdesenvolvimento, superpopulação, entre
outros...
Os filmes de Carlitos, inteligentemente interpretados para um
público jovem, encerram profundas lições sobre muitos problemas
humanos – solidariedade e miséria, solidão e amor, espírito
inventivo e dinamismo... sobre questões sociais e políticas – desde
suas primeiras fitas cômicas até suas conhecidas obras-primas como
“Luzes da Cidade”, “Tempos Modernos”...
O filme “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” foi proibido apenas para
os menores de 10 anos de idade! Entretanto, os pais devem
considerá-lo inconveniente para essa idade, devido às cenas de
extrema violência, matanças e trucidamentos. Como episódio regional,
retrata aspectos reais num despojamento excelente, com
interpretações de sensível valor artístico. Quanto ao ambiente, às
situações em foco, aos sentimentos de ódio e vingança, tornam o
filme impróprio para crianças de dez anos. Ver como se ferra uma
homem, como se realiza uma vingança brutal, não nos parece indicado
para o público infantil. A complexa e difusa evolução mística de um
personagem perdido nos matizes contraditórios de uma reabilitação
que culmina na defesa de inocentes e na matança de assassinos
profissionais, foge também à compreensão de crianças de dez anos,
por serem problemas e cenas de todo inadequadas para essa idade...
Entretanto, a Censura Federal houve por bem cotá-lo para dez anos!
Por quê?! Pelo fato de uma obra ser artisticamente válida e
aceitável como estudo social e psicológico não significa que se
destina ao público infantil. Não é apenas a ausência de cenas
eróticas que torna aconselhável uma obra para a infância. Com
adolescentes a partir de 14 anos, já seria possível discutir o filme
como versão de obra literária rica em conteúdo e nuanças do ponto de
vista social e regional. Seria até mesmo uma possibilidade de
encontro com a obra de Guimarães Rosa, permitindo aos jovens mais
amadurecidos e apreciadores dos livros uma análise dos diferentes
aspectos – literário e cinematográfico. Nós, educadores, não podemos
nos fixar exclusivamente na ausência ou presença de “cenas imorais”,
ignorando a importância de outras influências psicológicas, deixando
de apreciar uma obra do ponto de vista educativo. Filmes como “Cedo
Demais para Amar” e “Amanhã será Tarde Demais” propõem uma visão
moral sobre o amor e o sexo, permitindo que o assunto seja discutido
e que os adolescentes se liberem de suas dúvidas. Portanto, são
filmes “positivos”. Já uma película como “Vagas Estrelas da Ursa”,
levanta questões de tal ordem que, apesar de suas qualidades
estéticas e seu final positivo, não pode ser aconselhada para
jovens, mesmo de 18 anos, sem uma análise de profundidade... são
inconvenientes para qualquer público. Pois também é realidade que os
alimentos se decompõem – e ninguém se serve deles nessas
condições...
Uma “cultura” cinematográfica pode ser iniciada na infância, por
volta dos oito anos. Irene Tavares de Sá nos fala de uma experiência
realizada com alguns meninos dessa idade, quando foi chamada a
atenção deles para a violência e inverossimilhança de certas
situações nos filmes a que assistiram, e eles entenderam, passando a
aplicar esse critério de observação em outras películas. Cabe-nos
desenvolver desde cedo: o senso estético, para que obras medíocres
não sejam apreciadas; a capacidade de julgar; o sentido do real e do
irreal. A cultura cinematográfica deveria ser assunto de interesse
para os pais, a fim de habilitá-los a acompanhar um pouco melhor o
processo das influências que o cinema pode exercer sobre seus
filhos.
O público jovem da classe média vê habitualmente seis a oito filmes
por mês, sem falar nos da TV. Há quem veja dezesseis por mês! Ou até
quinze vezes o mesmo filme. Novos ídolos surgem e a juventude os
elege e imita, com devoção e entusiasmo. A infância mostra-se
sensível de modo especial aos desenhos animados, que nem sempre
podem ser considerados inofensivos. Alguns desses desenhos mostram
às crianças: pequenas maldades, crueldades; desenvolvem o instinto
de agressividade; ou focalizam problemas de adultos – rivalidade
amorosa, as vantagens de um furto e da astúcia, etc. Não são,
portanto, educativos, ou sequer inofensivos. O importante é não
deformar desde cedo o bom gosto, ou desvirtuar os valores morais,
sociais, artísticos.
O cinema é uma escola de costumes, fato este comprovado pelo
comportamento da juventude: modas, atitudes e preferências. Por que
não utilizá-lo para debates e conversas? Por que não considerá-lo um
instrumento valioso de educação?
No filme “Clamor do Sexo”, temos uma visão familiar falseada; assim
como em “Candelabro Italiano”, a inverossimilhança se manifesta no
plano sentimental e moral. Esses e outros aspectos relativos à
VERDADE devem ser destacados sempre, se quisermos que os
adolescentes formem um justo juízo sobre as obras a que assistem.
Eles precisam se familiarizar com o artificialismo de certas
situações que SENTEM como irreais ou falsas, e para as quais podemos
despertar seu senso crítico e analítico. Dessa maneira, eles se
tornarão conscientes da carência dos elementos fundamentais,
ausentes em determinada situação onde deveriam estar presentes, como
na “Balada do Soldado”. Em nenhum momento deste filme, por mais
dramático que seja, alguém reza ou eleva o pensamento a Deus – homem
ou mulher, moços ou velhos – quando sabemos que, em presença da
morte, a Avó reza... Essa inautenticidade corre por conta da posição
filosófica do diretor e, por ser inautêntica, precisa ser comentada.
O filme “Se todos os Homens do Mundo” constitui um exemplo de
película de mentalidade humanista, com um tema que representa, por
si mesmo, uma unidade didática, estimulante e inspiradora para a
juventude. Adoecem os tripulantes de um pequeno barco pesqueiro.
Somente um soro obtido no Instituto Pasteur poderia salvá-los.
Através de um circuito de radioamadores, mobilizam-se algumas
pessoas que, aos poucos, vão ampliando o âmbito de ação. Apenas um
dos tripulantes, o único que não provara o alimento envenenado,
continua de pé. Era justamente o elemento desprezado pelos demais e
que, afinal, se atira nas águas geladas do Mar do Norte para
recolher a vacina... A simplicidade, o realismo e o suspense
imprimem intensidade dramática ao filme, ao mesmo tempo que por ele
perpassa um grande sopro de solidariedade humana. Indivíduos de
diferentes nacionalidades, importantes companhias de aviação, um
jovem radioamador de Paris, um cego de guerra em Berlim, civis e
militares, homens e mulheres, todos se movimentam a fim de salvar um
punhado de vidas humanas – e o conseguem, após denodados esforços.
Efeitos especiais dão-lhe um tom de documentário elaborado, repleto
de indícios sugestivos, realçados por uma simbologia eficaz. Quantas
lições para os adolescentes, que despertam para os problemas
mundiais! “Se Todos os Homens do Mundo” focaliza o heroísmo anônimo,
apagado, demonstrando o que poderia ser o panorama mundial, se
houvesse um pouco mais de boa vontade entre os homens.
Na fita “A Bela Americana”, comédia de situação, o tom incide sobre
a solidariedade dos personagens, expressa no espaço limitado onde
todos vivem, no recanto de um bairro. Trata-se de uma comédia de
mensagem filosófica... Dentro da metrópole desumana, um grupo
convive e compartilha das vicissitudes diárias, assumindo
alegremente os problemas próprios e alheios, em ritmo inalterado até
que... O “forasteiro”, que vem alterar a paisagem, mobiliza atenções
e suscita conflitos, é um espetacular carro de luxo – “a bela
americana”, que o herói compra por um preço irrisório. Toda a vida
do modesto operário se convulsiona. Tudo à sua volta se modifica.
Onde alojar o luxuoso carro? O que fazer daquele veículo que chama a
atenção de todos, por onde passa e leva seu dono à recepção
oferecida por uma embaixada, enquanto o guarda de trânsito solícito,
pensando tratar-se de algum embaixador, apita e lhe abre caminho? O
filme constitui um retalho do cotidiano, convulsionado pela presença
do elemento estranho, afinal dominado pelo bom senso – o belo,
luxuoso e inútil “cadilac” foi transformado em carroça de sorvete e
faz grande sucesso no Hipódromo. De instrumento de luxo e de
ociosidade, o belo conversível transforma-se em instrumento de
trabalho. É a prosperidade firmada na realidade e no esforço
cotidiano. A lição parece ser esta: o que beneficia o homem não é o
que lhe chega às mãos sem esforço, mas o que ele faz com suas
próprias mãos, valendo-se de sua imaginação e inteligência.
A mensagem de “A Ponte do Rio Kwai” está centralizada na palavra
“loucura”, dita no final, pelo médico... Todas as guerras são
cruéis, desumanas e absurdas – hipnotizam os homens, suscitam baixos
instintos e grandes represálias... Demonstram quão atrasada se acha
ainda a humanidade, quão primitivo é o homem, quão longe está dos
princípios cristãos e humanitários, por mais que alguns se esforcem
por implantá-los e amenizar as condições impostas pela guerra. E o
médico do filme murmura, inutilmente, sobre o verdadeiro sentido da
guerra: “Loucura, loucura!”
Outro filme que se presta bastante a debates com adolescentes – “O
Melhor dos Inimigos” – temos nesta sátira um pelotão italiano
durante a guerra da Abissínia, defrontando-se com alguns soldados
ingleses, seus inimigos. A sorte dos prisioneiros e dos vencedores
alterna-se por diversas vezes neste curioso filme sobre a
antibravura... O circunspecto comandante inglês, sempre digno apesar
de maltrapilho, conferencia com o desgostoso capitão italiano sobre
as suas mútuas vicissitudes. No fundo se estimam e não se consideram
inimigos... No episódio do lago e da floresta incendiada,
refugiando-se os dois pelotões na pequena ilha do centro do lago,
confraternizam. Mais adiante, organizam um acampamento e jogam
futebol.. Após muitas peripécias, alcançam a estrada e um comboio
militar os recolhe. Há diálogos. Ninguém se odeia, todos precisam
viver e regressar a seus lares, às suas famílias! Antes de se
separarem, trocam cortesias militares. Afinal, por que lutamos uns
contra os outros?! Esta hilariante sátira sobre a guerra e sua
estupidez perde muito em ser descrita. Seu humanismo subjacente, a
sóbria comicidade das situações e dos diálogos deixam no espírito do
espectador a lembrança do que poderiam ser as relações humanas, se
houvesse no mundo um pouco menos de vaidade e ambição; e um pouco
mais de bom senso e compreensão.
Theresa Catharina de Góes Campos
(do livro “O progresso das comunicações diminui a solidão humana?
Uma interpretação histórica das comunicações gráficas e
audiovisuais, desde a Pré-História até o Intelsat” – de Theresa
Catharina de Góes Campos. Editora Lidador, 1970).
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