EDITORIAIS


O porre do presidente

FREI BETTO

Anda esquecido por aí o único filme dirigido pelo Henfil, “Deu no New York Times”. É uma sátira. Num país miserável governado por um ditador, o jornal é ansiosamente aguardado a cada manhã para pautar a agenda do governo. Profeta, Henfil já nos alertava que o NYT não pode ser levado a sério. Trata-se de um pastelão que sempre se aliou à política colonialista e intervencionista da Casa Branca.

Por que o NYT não segue as pegadas do “Washington Post” e denuncia as torturas que as tropas americanas infligem aos iraquianos? Por que não clama contra o campo de concentração, avesso à tradição jurídica, que os EUA instalaram na base naval de Guantánamo, violando a soberania de Cuba? Ninguém é capaz de imaginar uma base naval de Cuba nas costas da Califórnia, protegida pelo silêncio conivente da grande mídia...

Algo no governo Lula incomoda o NYT. Claro, este governo obrigou os EUA a rever a agenda da Alca; a OMC, em Cancún, a tratar com mais respeito os países emergentes; e, agora, pela primeira vez, os EUA se vêem punidos pela OMC no modo como conduzem sua política algodoeira.

Como se destrói um símbolo? Qualquer manual de propaganda fascista revela a receita. Não convém criticar os princípios que ele encarna. Deve-se começar por ridicularizá-lo, como a foto de João Pedro Stédile retocada em capas de revista e de jornais para expressar um perfil demoníaco. Não se debate a importância da reforma agrária. Tenta-se fugir da questão política e centrar o alvo na mais vulnerável: a moral. Assim foi com Luther King, acusado de ter várias amantes; com Mandela, tido como desequilibrado; com Gandhi, “um frouxo”, na opinião de seus adversários, que o assassinaram.

Lula nunca teve qualquer dependência de álcool. Jamais freqüentou bares, mesmo no tempo em que, metalúrgico, isso era comum no ABC. Se toma um trago é por razões sociais, como também faço. Mas jamais em excesso ou para atingir aquele nível de inconsciência que abre espaço, em nosso comportamento, à irresponsabilidade.

Mas Lula é viciado. Em política. Adora tomar porres homéricos de povão, com quem gosta de se misturar, abraçar e afagar. Ali, entre os pobres, sua adrenalina vai a mil. Por isso, fica de ressaca quando a conjuntura o obriga a aprovar um novo salário-mínimo aquém de seu sonho e das necessidades dos trabalhadores e dos aposentados.

O NYT pretendeu minar a honra e a autoridade de nosso presidente, porque este obrigou a Casa Branca a conter a sua sanha na Venezuela e em Cuba.

Nosso governo restaurou o Mercosul, aproximou-o do Grupo Andino, e não apoiou a invasão do Iraque. O ministro Celso Amorim não fica descalço quando ingressa nos EUA, como o fazia o ministro das Relações Exteriores de FHC.

Indagado nos EUA se gostava de Bush, Lula respondeu que gosta mesmo é da Marisa, com quem está casado há trinta anos. O NYT não pode suportar a autoridade moral e política de um retirante nordestino, que saiu da fábrica para presidir o Brasil. Por isso, tenta forçá-lo a beber o veneno destilado em suas páginas. Esquece que somos vacinados contra esse tipo de armação, como aquela que pretendeu atingir o ministro José Dirceu no caso Waldomiro. Ninguém acusa João Paulo II de corrupto porque seu assessor direto, monsenhor Paul Marcinkus, caiu nas malhas da Justiça italiana, acusado de fraude e evasão de divisas.

Deu no NYT que Lula bebe em excesso. A fonte, Leonel Brizola. Talvez Chico Buarque possa explicar quando canta o pote de mágoa. A embriaguez da derrota agride a lucidez da vitória. Mas quem tinha mesmo razão era o Henfil.

FREI BETTO é escritor e assessor especial do presidente da República.
 

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