A coragem de jornalistas norte-americanos
Quando pesquisamos sobre a história dos meios de comunicação na
América do Norte, encontramos muitos exemplos de ousadia e coragem
nos que deixaram seu nome registrado por exercerem papel de
destaque.
Frei João Batista Morelli Castelnuovo publicou, no México, em 1710,
o primeiro livro em língua portuguesa impresso na América: o
“Luzeiro Evangélico”.
Nos Estados Unidos da América... Stephen Daye instalou uma
impressora na Nova Inglaterra, em 1638.
Em 1671, o Governador da Virgínia afirmou:
“Graças a Deus não temos escolas livres nem tipografias e espero que
nestes cem anos não venhamos a tê-las. Porque o saber gerou a
desobediência, a heresia e as seitas no mundo; e a imprensa tem
divulgado essas coisas e calúnias contra o governo. Deus nos livre
de ambas.” (sic)
Setenta anos depois do desembarque dos Peregrinos e quase duzentos
anos depois da descoberta da América por Cristóvão Colombo, saía o
primeiro jornal dos Estados Unidos, no dia 25 de setembro de 1690,
impresso num prelo manual, num barracão de madeira, situado numa
estreita rua de Boston. Chamava-se “Public Occurrences” e constava
de quatro páginas do tamanho de uma lauda, sendo que apenas 3 dessas
páginas eram impressas. A página em branco destinava-se ao que os
leitores desejassem escrever, antes de passar adiante o seu
exemplar, acrescido das notícias de que tinham conhecimento.
Os primeiros jornais dispunham de uma tiragem bastante limitada,
supondo-se que muitos leitores serviam-se de apenas um exemplar.
Esses jornais, para que ficassem mais ao alcance do público, eram
colocados até mesmo em bares.
O tom de “Public Occurrences” nos parece inofensivo, íntimo e
boateiro. Mesmo assim, foi proibido e seu primeiro número ficou
sendo também o último. Razões da medida que nos afigura drástica:
duas notícias divulgadas e a consternação gerada pelo próprio
aparecimento de um jornal. Uma das notícias referia-se a um ataque
aos franceses no Canadá; afirmava-se que certos grupos de índios
haviam instigado o ataque e tinham concordado em ajudar. Quando a
expedição estava de partida, esses mesmo índios alegaram que não
podiam acompanhá-la devido à varíola. Ao mesmo tempo, a redação
insinuava que os índios teriam sido corrompidos pelos brancos,
movidos por interesses particulares. A segunda notícia trazia
igualmente uma insinuação, versando sobre um escândalo na côrte
francesa. As duas notícias consistiram as calúnias ao governo, que o
Governador da Virgínia declarou que a imprensa divulgava... Benjamin
Harris, o editor de “Public Occurrences”, foi imediatamente preso.
A liberdade de imprensa
Devemos recuar na história, para compreendermos por que os
comentários relacionados às autoridades governamentais eram
considerados caluniosos. A lei inglesa, sob cuja vigência estavam as
colônias americanas, visava a proteger a ordem social existente. O
governo era controlado por um número restrito de pessoas, entre as
quais o rei e alguns funcionários seus, que sustentavam e mantinham
as suas ordens. Aqueles que detinham o poder nas mãos consideravam o
homem comum incapaz de entender como as nações deviam ser governadas
e, por conseguinte, sem qualquer direito a tecer comentários ou
críticas políticas. Os únicos jornais legais eram os licenciados
pelo Estado. Tal licença só era concedida àqueles de quem se podia
esperar que publicassem somente o que o cidadão comum tinha o
privilégio de saber. Qualquer comentário livre sobre as leis,
autoridades ou o próprio governo, concorreria, pensavam as
autoridades, para destruir o respeito do povo no poder
governamental. Daí não haver liberdade de imprensa.
Benjamim Harris, o primeiro jornalista americano, editor de “Public
Occurrences”, foi impedido de publicar o segundo número de seu
jornal porque o primeiro “continha reflexões de natureza muito
elevada”.
O jornal seguinte, impresso em Boston, apareceu quatorze anos
depois, a 24 de abril de 1704. John Campbell, agente do Correio,
imprimia e distribuía o seu “News-Letter”: uma folha de papel e às
vezes meia folha, com duas colunas de matéria impressa. Era
publicado trazendo as palavras “com autorização”, e nada divulgava
que pudesse prejudicar ou inquietar o governo. Em 1719, Campbell foi
afastado de seu emprego no Correio; ficou tão indignado que não quis
mais enviar o seu jornal pela mala postal.
O sucessor de Campbell, William Brooker, dedicou-se também ao
jornalismo.
A 22 de dezembro de 1719, Andrew Bradford, agente do Correio de
Filadélfia, começou sua carreira jornalística. No dia 2 de janeiro
de 1721, escreveu um artigo em que dizia, entre outras coisas:
“A nossa Assembléia-Geral está agora reunida e nós temos grandes
esperanças de que possa, nesta oportunidade, achar algum remédio
eficaz para reanimar o moribundo crédito dessa província, e
restabelecer as felizes condições em que vivíamos”.
Por causa dessas palavras, Bradford foi intimado a comparecer ante o
Conselho Provincial, para se explicar. Defendendo-se, o acusado
declarou que o referido parágrafo tinha sido escrito e inserido no
jornal sem o seu conhecimento. Sua atitude conseguiu que o caso
fosse encerrado com apenas uma repreensão.
Observem que os jornalistas da época eram funcionários graduados do
Correio.
Anos depois, Benjamim Franklin assinava algumas matérias para a
imprensa, com o pseudônimo de “Bisbilhoteiro”. Perto da realização
de uma eleição anual, escreveu com essa assinatura um parágrafo que
dizia, entre outras coisas, que ninguém poderia ser chamado de
patriota sem estar “antes de tudo dominado pelo espírito público e
pelo amor à pátria”. Por incrível que pareça, essas palavras foram
consideradas suspeitas.
Imprensa e reforma social
Quando começou a Guerra pela Independência das 13 colônias
americanas, em 1775, publicavam-se 37 jornais nos Estados Unidos.
Esses impressos tiveram a sua parte na luta.
Muitos desses jornais não seriam qualificados por nós como sendo de
boa qualidade. Francamente parciais, o único motivo para a sua
publicação era, com freqüência, convencer os outros das idéias de
seu editor ou redatores. As notícias constituíam raridades,
atrasadas e muitas vezes imprecisas. A publicação processava-se de
modo irregular, vez que os proprietários costumavam interromper a
publicação, quando surgiam dificuldades financeiras. E bem limitado
era o número de assinantes.
O primeiro diário dos Estados Unidos surgiu em 1783. Começou como
semanário e viveu apenas 7 meses. Lançado por Benjamin Townes,
chamava-se “Pennsylvania Evening Post”.
A atuação de Tom Paine
Transportemo-nos agora para a Inglaterra, para recordar o inglês Tom
Paine – alguém que, no início de sua existência, fracassou em tudo
que empreendeu.
Afinal, decidiu tentar a vida no Novo Mundo, e lá se foi para a
Filadélfia. Logo após desembarcar, em fins de 1774, entrou em franca
atividade. De jovem desconhecido, iria passar à História como um
grande homem, eternamente relembrado. Tom Paine nascera para
enfrentar renhidas lutas e a época em que viveu lhe convinha
sobremaneira. Se tivesse vivido em tempos normais, não
convulsionados, não sujeitos a revoluções, ele não teria se
destacado, simplesmente porque suas maiores qualidades não se veriam
solicitadas. Sua fama deveu-se às exigências a que correspondeu. Ao
invés de empunhar espadas ou outras armas, tomou da pena com
entusiasmo, escrevendo um pequeno livro: “Senso Comum”. Que tolice,
afirmava ele, um continente ter de pertencer a uma ilha. O senso
comum diz que a América deve ser independente. Que tolice, os reis
governarem os homens – o senso comum manda que os homens possam se
governar. No fim do livro, Tom Paine lançou um apelo à
solidariedade:
“Ó vós que amais a humanidade. Todos os recantos do Velho Mundo
estão dominados pela opressão. A liberdade tem sido perseguida por
todo o globo. A Europa a encara como uma estrangeira e a Inglaterra
deu-lhe ordem de expulsão. Recebei os fugitivos e preparai um asilo
para a humanidade”.
A obra difundiu-se pela América do Norte como um autêntico incêndio.
Todos os que sabiam ler estavam com o “Senso Comum” nas mãos. Os
analfabetos, por seu turno, se alfabetizavam com o objetivo de
também ler o “Senso Comum”.
Até na Inglaterra o interesse era o mesmo. Os leitores concordavam
plenamente com o autor – a América tinha de ser independente.
Impulsionado por esse ideal, Tom Paine integrou-se ao exército de
George Washington, embora não deixasse de escrever.
“Chegou a hora em que as almas dos homens são postas à prova. O
soldado do verão e o patriota dos dias ensolarados faltam ao dever
para com a pátria, mas aquele que agora se mantém à altura merece o
amor e a gratidão do homem e da mulher”.
Deu a esse livro o nome de “A Crise”. Enquanto durou a guerra da
independência, escreveu um folheto após outro. Na hora da vitória,
escreveu: “Chegou ao fim a hora da provação dos homens!”
Onde houvesse direitos a reivindicar, Tom Paine acorria com a sua
pena. Logo que soube da Tomada da Bastilha, exclamou: “Minha terra é
onde não há liberdade”, viajando sem demora para a capital da
França, a fim de participar da Revolução. Os franceses reconheceram
o valor de sua presença, concedendo-lhe o título de cidadão
honorário.
Seu espírito imbuído de idéias liberais sonhava com o dia em que o
seu país, a Inglaterra, conheceria uma Revolução. Por isso regressou
à sua terra natal e escreveu outro livro: “Os Direitos do Homem”.
Obra semelhante às anteriores (“Senso Comum” e “A Crise”), falava
sobre os homens considerando-os como seres humanos, e não como
soberanos e vassalos. Sua mensagem: os homens podiam governar-se e
todos eram merecedores de direitos iguais. Quando tentaram prender o
autor, este viajou outra vez para a França. A violência da Revolução
Francesa fez com que Tom Paine passasse a ser encarado como um
elemento pacífico e moderado. Os ingleses queriam prendê-lo pelo
crime de ser radical, mas foram os franceses que o colocaram na
prisão, porque não o achavam suficientemente radical.
Mesmo durante a ausência de Tom Paine, os ingleses levaram “Os
Direitos do Homem” a julgamento. O veredicto foi: culpado. Tal
sentença fez com que o editor da obra, John Frost, juntamente com os
editores de um jornal que deram publicidade a “Os Direitos do
Homem”, fossem jogados no cárcere.
Garrison e o “Liberator”
Em 1831, na cidade de Boston, Garrison, um jovem alto e magro passou
a publicar semanalmente o “Liberator”, revista destinada a criar uma
consciência coletiva de oposição à escravatura. O primeiro número
apareceu no dia primeiro de janeiro.
Editado com periodicidade, o “Liberator” não agradou ao público,
pelos problemas morais que apresentava às mentes adormecidas e
acomodadas. Leitores exaltados quiseram arruinar Garrison, tentando
destruir o prelo que usava. Garrison foi agarrado e arrastado pelas
ruas tortuosas de Boston, com uma corda à volta do pescoço, como um
criminoso levado à forca, pois desejavam lhe dar tal fim.
Entretanto, Garrison conseguiu escapar. Com a mesma audácia inicial,
repetia: “Serei ouvido”. “Não recuarei um centímetro sequer”. E, ano
após ano, malgrado a oposição, malgrado os descontentes, sua voz
ecoou através do “Liberator”.
Um mártir da imprensa
Outros editores, todavia, que combatiam a escravidão, tiveram um
destino bem mais cruel. Olhemos para o Oeste americano e vejamos o
que sucedeu a um moço que abominava a escravidão e decidira
combatê-la.
Elijah Lovejoy, de 25 anos de idade, conseguiu um emprego na redação
de um jornal, na cidade fluvial de Saint Louis, tornando-se editor
logo depois. Lia diariamente a Bíblia e o jornal de Garrison, o “Liberator”.
Pastor protestante, Elijah Lovejoy considerava a escravidão um
pecado, por ser contrária à religião e à moral. Muitas pessoas já
pensavam assim.
Mas Lovejoy não só pensava assim, quis agir, fazer algo para
modificar a injusta situação de seus irmãos negros, começando a
escrever sobre o assunto. As reações fizeram com que os
proprietários do jornal em que Lovejoy trabalhava como editor o
chamassem e lhe ordenassem que escolhesse matéria mais agradável,
cômoda, que não trouxesse problemas ou confusão. Sugeriram a ele que
falasse sobre os gregos ou os italianos e esquecesse os escravos.
Seu direito não incluía a escravidão e, portanto, procurasse
manifestar seu pensamento escolhendo outros assuntos. Os
proprietários do jornal quiseram deixar bem claro que a liberdade de
palavra, embora muito justa, significava apenas a liberdade de falar
sobre coisas agradáveis e inofensivas, e nunca sobre matérias que
suscitassem polêmicas.
Certa noite, alguns indivíduos invadiram a oficina de Lovejoy,
apossaram-se de seu prelo, desmontaram-no e espalharam suas peças
pela região. Lovejoy transferiu-se, então, para Alton, Illinois,
onde tornou a montar um jornal, mais decidido que nunca a preocupar
os escravocratas. Em breve, possuía um novo jornal, fazendo com que
os habitantes de Sto. Louis lessem exatamente o que tinham lido
antes. Infelizmente, porém, a população de Alton se opôs às idéias
do destemido jornalista. Invadiram a sua oficina, dela retirando o
prelo, que jogaram nas águas barrentas do Rio Mississipi.
Contudo, a teimosia de Lovejoy sabia enfrentar a situação. Voltou a
montar outro jornal. Em 1837, a redação foi empastelada. Mandou
buscar outro prelo. Quando este chegou, um grupo de cidadãos se
reuniu para incendiar as instalações. Elijah Lovejoy saiu correndo,
para impedir o novo ato de sabotagem. Ouviu-se um tiro e ele caiu
morto. O prelo recém-chegado, como os anteriores, autênticas armas
na batalha contra a escravidão, foi lançado no fundo do rio.
A notícia de que Lovejoy morrera defendendo a liberdade de imprensa
chegou a Boston, agitando seus habitantes, que reverenciaram a
memória do primeiro mártir da imprensa a entrar para a História da
jovem nação, o primeiro homem a sacrificar sua vida pelo ideal de
jornalista. Os princípios pelos quais ele se batera estavam mais
vivos que nunca. Atualmente, ninguém sabe o nome daqueles que
empastelaram o seu jornal. Ninguém recorda Alton, a não ser para
identificar o local onde aquele jornalista imprimia o seu jornal e
foi assassinado. A bandeira que ele conduzia, nas letras e palavras
que imprimia, passou a outras mãos.
Theresa Catharina de Góes Campos
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