CINEMA


Mostra Alain Resnais na Cinemateca de São Paulo

Theresa Catharina

Em mostra com o título de Ciclo Sete Vezes Resnais, a Cinemateca de São Paulo exibirá, de 15 a 27/02/05, sete filmes do diretor ( de 82 anos ) de Hiroshima, meu amor (1959), O ano passado em Marienbad (1961)( este, ausente da exibição na Sala Cinemateca) , Smoking ( 1993) e No Smoking (1993). Destaco, também, como atrações desse ciclo cinematográfico, Meu tio da América e Amores parisienses, obras que volto a comentar.

Com "Meu tio da América" (Mon oncle d´Amérique - França, 1980), o diretor Alan Resnais deu a sua contribuição magistral para um mundo melhor.

"A única razão de ser de um ser é ...ser. Conservar a sua estrutura."

Para os que consideram o cinema apenas uma diversão superficial e sem maiores efeitos, as palavras acima pareceriam um texto de obra filosófica. Estariam enganados, porém. Aquele pensamento, expresso em vocábulos aparentemente muito simples, mas de profunda significação, é a citação inicial que se apresenta ao público na introdução do filme "Meu tio da América". Com esse impacto verbal, Alan Resnais revela de imediato a sua intenção, como diretor de uma obra que precisa e merece ser vista muitas e muitas vezes, tais os benefícios que pode trazer para a vida de cada um e da sociedade em geral, sem restrição de tempo ou espaço.

Sendo a originalidade a marca de sua carreira cinematográfica, o cineasta aborda os mecanismos da memória (como fez em "Providence") e o paralelismo de épocas diversas (como em "O ano passado em Marienbad") de maneira bastante especial, criativa na forma e no conteúdo, e transbordante de informação e reflexão crítica.

"O filme surpreende, desafia, aguça a sensibilidade e convida à reflexão, mas tudo isso numa linha bem-humorada, rara num realizador em geral monopolizado pelos mais angustiantes debates em torno da condição humana. Tratando seus personagens como instrumentistas de uma orquestra de câmara, Resnais abre mão do comando que poderia exercer sobre eles - e que exerceu sobre os personagens de seus outros filmes - para observá-los, divertido, complacente, um pouco à maneira de Truffaut.

Essa liberdade de ação se combina à beleza de imagens requintadamente construídas, como é sua marca registrada, tornando o filme leve, fluido, belo em todos os sentidos. As interpretações de Gérard Dépardieu, em seu melhor desempenho até hoje, de Nicole Garcia e Roger Pierre contribuem para que "Meu tio da América" se defina como obra-prima." (transcrição de texto reproduzido pela Fundação Cultural do DF, sem indicação de autoria, e distribuído ao público no Cine Brasília).

"Mon oncle d´Amérique" divulga a teoria científica do biólogo Henri Laborit, exemplificando-a pela ficção - a história de dois homens e uma mulher, de cidades e origens sociais e familiares diversas, da infância à idade adulta. Enfatiza a influência da família, das recordações infantis, dos jogos e das atividades iniciais. Destaca a importância do meio ambiente no desenvolvimento de personalidades e atitudes.

Voltando a citar o prólogo do filme (Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1980): "As plantas passam a vida toda no mesmo lugar, sem se deslocar, extraindo do solo em que estão tudo de que necessitam para viver."

Com a sua construção visual colorida (na qual também inseriu imagens em preto e branco), Alan Resnais aborda o problema da dificuldade de adaptação às constantes mudanças da vida atual, a relutância na aceitação da nova realidade sócio-econômica (exemplificado na figura do administrador de uma pequena empresa, quando esta é absorvida por uma grande companhia, com novas idéias, novos métodos e direção nova). Isolado da família (que não se mudou com ele para o local da nova função, que lhe foi imposta sem alternativa de recusa ou outra opção qualquer...), tenso, sentindo-se rejeitado e humilhado, sem saída, o marido e pai gourmet , apesar de aparentar ser fisicamente forte, tenta suicídio. Ora, logo nos seus primeiros momentos, "Meu tio da América" enuncia uma definição que precisamos apreender para conseguirmos sobreviver com dignidade e em consonância com o nosso potencial:

"Angústia é a impossibilidade de se controlar uma situação."

As idéias, experiências e conclusões do cientista Henri Laborit, divulgadas pelo filme, candidato ao Oscar de 1981 (melhor roteiro), sobre os conflitos sociais, motivam análises mais profundas: trata-se da luta pelo poder, uma luta que não respeita os direitos dos outros e provoca conflitos. Revela-se a guerra, então, como a ambição da propriedade sem restrições e sem limites, por qualquer meio, inclusive o violento, agressivo.

"Meu tio da América" aponta a presença dos outros em nós: nós somos os outros, que atuam sobre nós, que nos influenciam de um modo ou de outro. Daí ser um filme atual e permanente - universal. Os personagens são hodiernos: a atriz independente e liberada que, depois de conquistar um alto funcionário público (casado e pai de um casal de filhos menores), vê-se cuidando das crises de angústia e úlcera que ele passa a ter; uma atriz que, mais tarde, será enganada pela dramatização e astúcia (o amor?) da esposa traída que a procura para lhe pedir que permita ter de volta o seu marido, pois ela está sofrendo de uma doença fatal e tem pouco tempo de vida...Assim, a amante o abandona e o casal se reconcilia. Na sua solidão, tentando compreender o que ocorrera em sua vida particular, a atriz - transformada por necessidade em desenhista de modas - procura o seu ex-amante e a família dele, descobrindo, finalmente, que fora ludibriada. E a esposa, vitoriosa, ainda lhe diz que, se não fosse a sua ajuda (dela, esposa), o marido não teria escrito o livro sobre o sol que há muito planejava publicar.

Entre as cenas de experiências profundamente humanas, intercalam-se experiências laboratoriais com ratinhos, quando Laborit ilustra com muita ênfase os efeitos altamente perigosos da angústia, do stress, enfim, da tensão que nos fere intimamente e provoca úlceras, câncer, e muitos outros males e distúrbios funcionais, a nosso organismo tão sensível e frágil. Como não podemos reagir violentamente contra os outros que nos desagradam, ou ferem, ou irritam ou nos contrariam, escolhemos, erradamente, ser agressivos contra nós mesmos. O suicídio, por conseguinte, é a agressão máxima que se comete.

Material publicitário de "Meu tio da América" apregoa:

"O que os ratos brancos podem nos ensinar sobre a condição humana."

De acordo com as estatísticas mais recentes, o número de suicidas vem aumentando assustadoramente, no mundo inteiro, em todas as faixas etárias (até crianças e adolescentes se angustiam a ponto de perderem a esperança!) e condições, mas a idade dos que se suicidam está baixando!

A solução começa, é claro, na compreensão de que o problema existe e que a angústia precisa ser considerada como um ponto de partida para se encontrar uma saída positiva, humana, ainda que se recorra a uma alternativa, adaptação, ou a um redirecionamento de nossos interesses e objetivos. Daí a importância da criatividade - cuja definição, aliás, é, segundo cientistas da NASA que se pronunciaram a respeito, a capacidade de se resolver problemas. Sobreviver é nossa obrigação para com a vida que existe em nós. Precisamos realizar nosso potencial, conservar nossa estrutura, enfrentando e vencendo os obstáculos, sem deixar que a angústia nos domine, asfixie e nos leve à destruição.

Um dos trechos mais importantes de "Meu tio da América" comenta que, na hipótese de uma criança ser criada numa floresta, entre os animais, sem nenhum contato com outro ser humano, ainda que se desenvolvesse fisicamente, jamais seria um homem no sentido exato da palavra, devido à ausência do contato humano, pois é a comunicação com outras pessoas que possibilita a plena realização do ser humano. (Ver o filme "O garoto selvagem", de François Truffaut; ler meu comentário.)

Infelizmente, nem todos sabem apreciar essa obra-prima (a que TODOS DEVERIAM ASSISTIR!, por ser um filme que nos ensina a viver, nos faz refletir sobre nós mesmos, sobre a nossa sobrevivência pessoal, sobre a nossa realização como indivíduos inseridos em um contexto social...) do cinema contemporâneo europeu. Isto porque a comunicação de massa de baixa qualidade e o ritmo atual da vida nas metrópoles contribuem para a uniformização do espectador num estado de embotamento intelectual que se nega a pensar, raciocinar, refletir e, sobretudo, aprender, quando isto exige uma certa dose de concentração e esforço. O hábito de assistir a programas repetitivos e fáceis, no conforto de seu lar, sem nenhum esforço para selecionar outras produções de maior profundidade e de nível mais elevado, realizadas inteligentemente sobre assuntos sérios, filosóficos ou científicos.

Assim, uma janela cultural é fechada previamente pelo espectador que não busca seu aperfeiçoamento intelectual através da diversão caracterizada pela excelência de qualidade. Aos poucos, ele vai perdendo a capacidade de ler com rapidez as legendas e apreender o significado de um roteiro mais complexo, hermético ou simbólico. Conseqüentemente, os que se acostumam à mediocridade, talvez durmam ou se retirem da sala de projeção na primeira parte do magistral "Meu tio da América", reclamando:

"- Não sabia que era documentário" , ignorando que os gêneros artísticos nem sempre são rígidos ou limitados na sua criatividade, alienados quanto à possibilidade do cinema divulgar pensamentos, ensaios e relatórios científicos por meio da ficção dramática.

Mesmo entre aqueles que assistem ao filme até o fim, ainda encontramos os que, honestamente, perguntam:

"- Por que o título?! Não tem nada a ver!"

Mas é claro que tem a ver! A mensagem do "tio da América" está explícita, em um determinado momento da película, quando o público fica sabendo que era um parente citado porque decidira se mudar para a América e continuava pobre. A família repetia a história toda vez que alguém pensava em efetuar qualquer mudança em sua vida, em seu empenho para resistir a qualquer interferência na sua rotina tradicional. Todavia, a criança já percebia que era um relato mal contado e que o tio, na certa, enriquecera. O menino acreditava que o "tio da América" possuía realmente um tesouro, escondido em algum lugar... e, como acontece com todo tesouro, merecia ser procurado sem esmorecimento. É bem verdade que, em se tratando de símbolos e mensagens profundas, as leituras dos espectadores podem ser diferentes, pessoais... o que se constitui, portanto, em mais uma riqueza do filme. Quanta simbologia em um simples título! E como é importante que um título leve à reflexão e se revele aos poucos, devagar, gradualmente, desvendado lentamente, esclarecido pela mente e pela sensibilidade maravilhosa do coração humano!

Durante a projeção e ao término da sessão, percebemos que precisamos rever "Meu tio da América" ... para que possamos nos lembrar e compreender melhor os diálogos, a narração, as imagens. E que mais se poderia exigir de um filme, quando provoca, nos espectadores, a necessidade e o desejo de vê-lo mais vezes?!


Amores Parisienses

"Tu és como o vento, que faz cantar o violino e tem o perfume das rosas...(...) Palavras, palavras... (...) As palavras ternas e doces saem da minha boca, mas nunca do meu coração."

"Amores Parisienses", o mais "recente" filme de Alain Resnais, um dos nomes seminais do cinema francês inovador, mostra que o diretor de "Hiroshima Meu Amor" (1959), "O ano passado em Marienbad"( 1961), "Meu tio da América" (1980) e "Smoking/Non Smoking" (1993) ainda faz, aos 80 anos, muito sucesso e por isso continua sendo exibido nos cineclubes e no circuito comercial, como atualmente em São Paulo. O êxito foi facilitado porque, desta vez, sua obra não tem estruturas narrativas complexas, nem script enigmático por suas visões psicológicas. Os atores Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri ( os roteiristas de "Smoking/Non Smoking") escreveram o roteiro, cuja característica principal é a fluidez, na descrição ágil das situações e reações humanas facilmente reconhecíveis.

" - Você amaria um homem doido? Doido varrido por você? "

Homenageando, em seu contexto, a Cidade-Luz, e também, canções populares contemporâneas (36 composições), o filme nos permite um encontro com os anseios e problemas de pessoas da classe média. Os seres humanos nem sempre dizem a verdade ou, nem sempre as suas palavras refletem o que, na verdade, está acontecendo em seu íntimo ou em sua vida. E, com freqüência, se enganam na interpretação dos próprios sentimentos, deixando-se iludir, igualmente, com as aparências enganadoras do próximo. Carro e hotel caros seriam indícios de sucesso profissional e financeiro...Camille mostra-se encantada, ao ver a Guarda Republicana desfilar: "o uniforme valoriza!"

" - Eu não poderia viver sem você...você sabia?

- Não, eu não sabia."

Obra realista, engraçada e romântica. Nela, é possível enxergar as três dimensões da realidade: passado, presente, o futuro dos relacionamentos.

"Mascarar e trapacear para não sofrer muito." (Claude, sem conseguir dialogar com a esposa Odile, interpretada pela graciosa Sabine Azéma, de "Smoking/Non Smoking.) Ela reconhece querer se mudar para um apartamento maior, num bairro chique, mesmo que isso signifique uma dívida considerável. A todos, trata com cortesia, exceto seu marido...embora ele até ajude a mulher em algumas tarefas domésticas. Com seus amigos - o esposo observa - mostra-se tão atenciosa que até parece estar flertando com eles!

" - Se não digo nada, eu observo tudo. Eu me reprimo..."

E ocorre, algumas vezes, que Odile nem demonstra prestar atenção às perguntas de Claude: não responde, fala de outro assunto, comporta-se quase com indiferença.

"Você não quer que eu dê minha opinião, Odile! Quer que eu concorde com você. E fique feliz em concordar!" ( E tudo que o marido lhe sugeria era que pensassem um pouco mais antes de investir em um novo imóvel...)

"Amores Parisienses" (On connait la chanson - co-produção: França, Suíça, Inglaterra - 1997 - cor- dolby digital - 120 min.-35mm) é, de fato, o filme mais leve e divertido do octogenário Alain Resnais, um musical diferente porque não tem números de dança, mas reúne uma coletânea de canções francesas que revelam circunstâncias, expressam emoções e pensamentos, substituem diálogos dos personagens, urbanos e bem atuais. Os versos manifestam tanto a fantasia, o sonho, como a realidade de suas vidas, nas relações familiares e sociais, afetivas e profissionais. Diálogos interessantes e canções muito bem escolhidas para as situações e os personagens - tudo se encaixa, tudo se mostra apropriado ao contexto da obra - que eficiência! Quando se é competente, eis o resultado: obra de qualidade!

" Não se pode ser muito sincero. É preciso ser um pouco falso. "

No entanto, o pai de Odile e Camille é todo sinceridade e tranqüilidade, inserindo-se nas circunstâncias como um personagem que afirma sua presença, nos poucos momentos em que aparece. Uma simpatia de pessoa! Com a sua sabedoria pragmática, diz a Odile não entender um preço tão baixo para aquele apartamento enorme... Quando Camille não se sente bem, o pai logo quer saber se ela se alimentou, que tipo de alimento, ou se deixou de comer. Lembra, com toda a sua simplicidade, que os atletas se alimentam de massas e bananas, antes das competições. Viajou seis horas para ouvir a defesa de tese de Camille, entusiasmando-se com as observações elogiosas dos examinadores. Apesar de reconhecer, sem rodeios nem acanhamento, que ele nada entende do assunto, entusiasma-se: "Bravo, minha filha!"

" - Vai começar...não consigo relaxar..."

"(...) Tenho a impressão de que vou cair, morrer aqui mesmo.

(...) Sinto um peso de duas toneladas e meio no peito..."

E seu pai, contemplando-a carinhosamente:

" - Isso não é nada. Com o tempo, vai passar. "

Os adultos às vezes se agridem com palavras ou simplesmente agem com descortesia. Quando refletem sobre esses erros, um pedido de desculpas demonstra que chegaram à conclusão de que fizeram mal; esse reconhecimento é bom para a convivência. Como também funciona, ao se fazer uma besteira, reconhecer que cometemos um erro grave, precisando correr para os braços de quem pode nos oferecer carinho, apoio, até nos defender!

Comédia dramática existencial, com romance e humor refinado, " Amores Parisienses " apresenta-se como se fosse um teatro lírico contemporâneo, uma típica opereta para os dias de hoje. Diálogos comuns alternam-se com as cenas em que o elenco "canta" com as vozes de Maurice Chevalier, Edith Piaf, Dalida e Alain Delon, entre muitos outros. Jane Birkin, porém, dubla a si mesma. O filme partiu de uma idéia do dramaturgo britânico Dennis Potter (1935-1994), a quem "Amores Parisienses" é dedicado; em suas obras, os personagens interpretavam, a todo momento, músicas populares. O acaso e as coincidências têm papel fundamental nos acontecimentos narrados pelo roteiro, como na existência de todos nós, se refletirmos sobre essas surpresas tão comuns... Mais uma obra de Alain Resnais que merece ser vista e apreciada várias vezes! Uma jóia! E inteiramente rodada em Paris.

" Ele te acaricia com os olhos."

Original e criativo, além de agradável (desde a apresentação dos créditos iniciais), reproduz, em suas primeiras cenas, o fato do oficial nazista Von Choltitz desobedecer, na França ocupada, às ordens explícitas de Hitler para destruir Paris. Explosivos já tinham sido colocados em todas as pontes da cidade, mas o militar tomou decisão corajosa. No filme, a voz de Josephine Baker sai, sincronizada, provocando risos na platéia, dos lábios de Von Choltitz, "cantando " o clássico, na versão francesa, em que declara , como seus dois amores, o seu país e Paris ( "Two Loves Have I "): "Esses dois amores encantam o meu coração."

(...)"- Ser ajuizado é qualidade? pergunta Nicolas à sua amiga Odile, que lhe fala sobre o marido.

- Sim, é qualidade. "

Vencedor de sete César 98, entre os quais o prêmio de melhor filme, "Amores Parisienses" poderia ser previamente explicado aos espectadores não-avisados como obra realizada na linha de trabalho da comédia musical, dramática e romântica de Woody Allen, "Todos Dizem Eu Te Amo", considerando-se que o público jovem, e mesmo os adultos, levados pelo título em português, reagem de forma negativa, diante da surpresa cinematográfica. Constatamos essa reação da platéia, em diversas sessões. A informação sobre o gênero, mais importante que a sinopse, estabeleceria uma comunicação maior com o público ( recomendação: a partir de 14 anos).

" Ter um bom amigo é o que há de melhor no mundo" - reconhecem Nicolas e Simon - este, apaixonado por Camille ( a co-roteirista de " Amores Parisienses ", Agnès Jaoui), guia turística e pesquisadora universitária.

" - Passei a ser seu confidente: nada de sexo, só ouvidos."

A possibilidade do riso "nas tristezas. Quando se tem um bom amigo."

Uma foto da família de Nicolas, mostrada a Simon em cena de confidências, já tinha provocado anteriormente, da parte de Odile, a observação de que se assemelharia a uma publicidade de chicória... Simon, mesmo nas horas de trabalho, não tira Camille de seu pensamento, vivenciando uma contínua "vertigem do amor". Na sua presença, desdobra-se em atenções sinceras, na esperança apaixonada de que ela compreenda que têm afinidades de interesses. Camille lhe confessa estar trabalhando como " louca ", preparando-se para a defesa da tese dali a três dias e continuando suas outras atividades.

As contradições da vida universitária são, também, um dos temas de " Amores Parisienses", que expõe os projetos aparentemente sem utilidade próxima, sobre os quais poucos se interessam e, ainda assim, essas teses são publicadas! E quem as estudou e defendeu também parece não saber o que fazer dessas pesquisas no futuro...

"As canções, que funcionam como um coro, surgem para comentar a ação ou sublinhar o estado de espírito dos personagens, envolvidos em relações desajustadas em uma Paris romântica." São situações de amor, intrigas e algumas revelações sobre as pessoas que desfilam na tela, ante nossos olhos conduzidos por diálogos, melodias, imagens e sons a comporem a narrativa. Esta, inclui cenas absolutamente corriqueiras nas metrópoles, como grupos de turistas, barulho do trânsito e de construções, atropelamentos sem que o motorista socorra a vítima... E ninguém anotou a placa do carro!

Os personagens em primeiro plano, em cenários interiores, e a visão da rua, através de balcões e varandas, ou janelas, por onde se vê pessoas e veículos se movimentando, nas calçadas e nas ruas, o que imprime uma característica realista, "ao vivo". Ou durante a festa, alguns convidados conversam, desfocados, compondo o cenário de fundo para os protagonistas. Na estação ferroviária, barulhenta e agitada, a esposa de Nicolas tenta dialogar com o marido. Na maternidade, não vemos os bebês, mas ouvimos a sua "canção" exclusiva - o choro quase em coro! - a invadir os corredor. E a bela paisagem contemplada, do apartamento novo de Odile e Claude, nas cenas noturnas da festa: a igreja Sacré-Coeur de Montmartre, a silhueta inconfundível da Torre Eiffel, iluminadas e iluminando quem sabe admirá-las!

"Gostaria que a terra parasse, para eu descer."

"De nosso amor ardente restariam apenas cinzas" - canta (e atua) Jane Birkin, com muita sensibilidade.

Angustiada ao extremo, pede que o marido lhe fale a verdade...

Afirma que prefere a verdade:

- Diga "não consigo", "as coisas não vão bem..."

Ela acredita que esconder a realidade nada resolve, complica, multiplica os problemas, impedindo a sua solução.

" - Por que você chora assim, constantemente?"

Odile, Madame Lalande, é empresária e muito carinhosa com sua irmã Camille, por quem se preocupa sinceramente. Odile, Camille, Claude e Simon não fumam, nem a esposa de Nicolas (Jane Birkin) - os outros, não largam o cigarro, o que chega a incomodar os espectadores não-fumantes, entre os quais eu me incluo. Parece até que sentimos o cheiro desagradável a nos atacar olhos, narinas e garganta! Enquanto a anfitriã arruma as travessas de salgados e doces, na cozinha, Nicolas fuma sem parar, conversando ao lado dela... e o cigarro aceso pairando acima da mesa, como espada de Dâmocles contemporânea, ameaçando os pobres mortais não-fumantes e seus alimentos supostamente limpos e saudáveis.

Lambert Wilson, dono da imobiliária que era de seu pai, é o galã da história: o jovem Marc (será que encontrou e bebeu da fonte da juventude?!), elegantemente vestido, cortês para uns, agressivo e indelicado com o seu empregado mais antigo e culto (Simon). Constantemente trazendo flores para oferecer, Marc encanta as mulheres. Sua capacidade de sedução traz resultados rápidos, nos mínimos detalhes. Seu resfriado é confundido com o que seriam lágrimas de uma suposta decepção amorosa, beneficiando-se, assim, de uma falsa imagem de homem carente de amor...ao ser observado por quem deveria se mostrar mais inteligente! Marc usa e abusa de clichês, em seus diálogos sociais, comerciais e sentimentais. Mas, tão elegantemente vestido, o efeito de conquista é imediato! Uma de "suas" canções bem define seu personagem, que "ama todas as garotas", sejam quais forem e onde quer que estiverem.

(...)"Quando se perde a cabeça, perde-se muito mais!"

Destaques: produção, direção, interpretação, roteiro; temas, personagens e diálogos; trilha sonora (mixagem, sonoplastia); fotografia, cenografia (cenários interiores e cenas externas) e objetos de cena; penteados e maquiagem; figurinos (Sabine Azéma veste Christian Lacroix; Lambert Wilson usa Christian Dior Monsieur); apresentação dos créditos iniciais e dos créditos finais. Filme sem cenas de violência, baixarias ou qualquer tipo de apelação, nem sensacionalismo. Sem linguagem chula, nem gestos vulgares. Uma preciosidade do cinema!

"- Por que (recomeçar)?

- Porque eu esperei por você muito tempo."

Entre os intérpretes das canções de "Amores Parisienses ", além dos que foram citados, estão: Josephine Baker; Gilbert Bécaud; Charles Aznavour; Jacques Dutronc;Sylvie Vartan; Johnny Halliday; Serge Lama; Claude François; France Gall; Sheila; Albert Préjean; Koval; Michel Sardou; Téléphone; Simone Simon; Dranem; Alain Bashung; Pierre Perret; Henn Garat; e Julien Leclerc ...

" Com o tempo, tudo passa. Esquecemos o rosto, esquecemos a voz. Quando o coração bate mais forte, não vale a pena ir mais longe."

E vejamos o que escreveram alguns críticos:

"Uma sinfonia" (Adriano Schwartz); "a vida a cantar" (Amir Labaki); "diversão de mestre" (Christian Petermann); "música no coração" (Inácio Araújo); "o discreto charme da burguesia" (João Leiva Filho); "Resnais bem-humorado" (Suzana Amaral).

Outra temática de " Amores Parisienses ": a questão do profissionalismo entre os corretores imobiliários; as práticas comuns que indicam falta de ética e, portanto, seriam inaceitáveis e condenáveis; as omissões...essas informações caladas que, na verdade, são mentiras a revelarem desonestidades e prejuízos para os clientes.

" - Sim, no trabalho de corretor, diz-se qualquer coisa."

O roteiro apresenta situações em que os casais têm dificuldades na interpretação das atitudes e palavras de seus cônjuges. Ou "vêem" demais ou de menos! Ouvem e lembram o que deveriam esquecer, para seu próprio
bem...Ou deixam de se voltar para o outro, de ouvidos atentos, como acontece entre os amigos de verdade! Cena de jantar em restaurante ilustra esse desencontro. No local, ouvimos também o desabafo de jovem separada...Ela chega a confessar, à amiga, que até se sente mal, ao contemplar toda aquela " felicidade " de Claude e Odile, em mesa próxima.

O problema do desemprego revela-se em sua face comum - a procura durante anos, aainda que a pessoa tenha um bom curriculum. As histórias se parecem...

Para Odile, o que ela descumpriu, como empresária, pode ser desculpado com a frase:

" Nada é certo, enquanto não estiver no papel!"

Otimista, pragmática em alguns assuntos, carinhosa com a irmã Camille, que precisa ser interrompida ou perturbada em seu trabalho de guia turística, para prestar atenção em quem somente tem olhos para ela. Acontece que tanto Camille quanto Nicolas enfrentam um problema de saúde real, embora quem não sofra desse mal tenda a minimizá-lo. Ambos procuram médicos diversos, entretanto, talvez porque não sejam sinceros nas consultas, ouvem diagnósticos diferentes, conselhos contraditórios. Eles mesmos não reconhecem seu estado depressivo, então, o tratamento demora a fazer parte de seu cotidiano. Como espectadores, refletimos, mas não deixamos de rir com o roteiro desse filme, no qual a realidade é abordada com um talento especial e, mesmo ao descrever um problema sério como a depressão, o faz de modo divertido, assumindo um tom absurdo e autêntico de tragicomédia cotidiana. Hipoglicemia, espasmofilia tornam-se assuntos corriqueiros nos encontros sociais.

"- E todos os remédios que toma! Para isso e para aquilo...Eu nunca tomo remédios!" (...)

" - O médico disse que ela está bem. Não tem nada de grave...só um problema de nervos. Nada para se preocupar."

O médico jovem e alegre recebe Nicolas em consultório onde há um grande aquário. (Atenção para os versos detalhistas da canção " Je suis malade " - Estou doente.)

Outro médico, de mais idade, com a sua experiência tenta tranqüilizá-lo:

"Seu coração ainda vai durar bastante tempo. (...) Relaxe, ande de bicicleta, não se preocupe tanto com as palpitações... ou vai adquirir uma úlcera. Deixe seu coração palpitar...é natural."

A médica irritada com a prescrição de um colega que anteriormente tratou de Nicolas dá consultas em ambiente ruidoso, enervante: através de janela perto da mesa onde trabalha, sons estrondosos de máquinas de construção...

Nicolas prefere ter depressão, a sofrer de câncer ou outras doenças.

" - E quanto tempo dura uma depressão?

- A minha durou quatro anos.

- Quatro anos?"

Esse diálogo termina em cena de ternura e romantismo tranqüilo, próprio das pessoas amadurecidas. Momento em que se aceita por meio da reflexão, assumindo uma sinceridade íntima, o poder do sentimento afetivo, que deve acompanhar o tratamento médico da depressão tão comum entre nós...

Em muitas circunstâncias, a verdade, de fato, incomoda bastante. Aos pacientes, aos cônjuges, aos amigos e parentes, aos colegas de trabalho. Daí a dificuldade que temos em aceitá-la em nosso íntimo, muito menos verbalizá-la.

Assim como participamos da animação de alguns personagens, em seus preparativos para a festa, constatamos que a reunião social também serviu de ocasião para os desagradáveis comentários, as fofocas, intrigas e inverdades. Há pessoas que, sem a menor cerimônia, tiram alimentos dos pratos de outrem! Ou se mostram descorteses, maliciosos.

O silêncio, a bagunça generalizada nos dirão que aquela festa terminou, servindo de cenário para alguém que entrará em cena e, olhando diretamente para a lente da câmera, isto é, olhando para nós, espectadores, vai nos fazer uma pergunta perfeita para encerrar a "nossa festa"... esse filme que Alain Resnais fez para nós!

Theresa Catharina de Góes Campos

Voltar