Mostra Alain Resnais na Cinemateca de São Paulo
Theresa Catharina
Em mostra com o título de Ciclo Sete Vezes Resnais, a Cinemateca
de São Paulo exibirá, de 15 a 27/02/05, sete filmes do diretor
( de 82 anos ) de Hiroshima, meu amor (1959), O ano passado em Marienbad (1961)( este, ausente da exibição na Sala Cinemateca)
, Smoking ( 1993) e No Smoking (1993). Destaco, também, como
atrações desse ciclo cinematográfico, Meu tio da América e
Amores parisienses, obras que volto a comentar.
Com "Meu tio da América" (Mon oncle d´Amérique - França, 1980),
o diretor Alan Resnais deu a sua contribuição magistral para um
mundo melhor.
"A única razão de ser de um ser é ...ser. Conservar a sua
estrutura."
Para os que consideram o cinema apenas uma diversão superficial
e sem maiores efeitos, as palavras acima pareceriam um texto de
obra filosófica. Estariam enganados, porém. Aquele pensamento,
expresso em vocábulos aparentemente muito simples, mas de
profunda significação, é a citação inicial que se apresenta ao
público na introdução do filme "Meu tio da América". Com esse
impacto verbal, Alan Resnais revela de imediato a sua intenção,
como diretor de uma obra que precisa e merece ser vista muitas e
muitas vezes, tais os benefícios que pode trazer para a vida de
cada um e da sociedade em geral, sem restrição de tempo ou
espaço.
Sendo a originalidade a marca de sua carreira cinematográfica, o
cineasta aborda os mecanismos da memória (como fez em "Providence")
e o paralelismo de épocas diversas (como em "O ano passado em
Marienbad") de maneira bastante especial, criativa na forma e no
conteúdo, e transbordante de informação e reflexão crítica.
"O filme surpreende, desafia, aguça a sensibilidade e convida à
reflexão, mas tudo isso numa linha bem-humorada, rara num
realizador em geral monopolizado pelos mais angustiantes debates
em torno da condição humana. Tratando seus personagens como
instrumentistas de uma orquestra de câmara, Resnais abre mão do
comando que poderia exercer sobre eles - e que exerceu sobre os
personagens de seus outros filmes - para observá-los, divertido,
complacente, um pouco à maneira de Truffaut.
Essa liberdade de ação se combina à beleza de imagens
requintadamente construídas, como é sua marca registrada,
tornando o filme leve, fluido, belo em todos os sentidos. As
interpretações de Gérard Dépardieu, em seu melhor desempenho até
hoje, de Nicole Garcia e Roger Pierre contribuem para que "Meu
tio da América" se defina como obra-prima." (transcrição de
texto reproduzido pela Fundação Cultural do DF, sem indicação de
autoria, e distribuído ao público no Cine Brasília).
"Mon oncle d´Amérique" divulga a teoria científica do biólogo
Henri Laborit, exemplificando-a pela ficção - a história de dois
homens e uma mulher, de cidades e origens sociais e familiares
diversas, da infância à idade adulta. Enfatiza a influência da
família, das recordações infantis, dos jogos e das atividades
iniciais. Destaca a importância do meio ambiente no
desenvolvimento de personalidades e atitudes.
Voltando a citar o prólogo do filme (Prêmio Especial do Júri no
Festival de Cannes de 1980): "As plantas passam a vida toda no
mesmo lugar, sem se deslocar, extraindo do solo em que estão
tudo de que necessitam para viver."
Com a sua construção visual colorida (na qual também inseriu
imagens em preto e branco), Alan Resnais aborda o problema da
dificuldade de adaptação às constantes mudanças da vida atual, a
relutância na aceitação da nova realidade sócio-econômica
(exemplificado na figura do administrador de uma pequena
empresa, quando esta é absorvida por uma grande companhia, com
novas idéias, novos métodos e direção nova). Isolado da família
(que não se mudou com ele para o local da nova função, que lhe
foi imposta sem alternativa de recusa ou outra opção
qualquer...), tenso, sentindo-se rejeitado e humilhado, sem
saída, o marido e pai gourmet , apesar de aparentar ser
fisicamente forte, tenta suicídio. Ora, logo nos seus primeiros
momentos, "Meu tio da América" enuncia uma definição que
precisamos apreender para conseguirmos sobreviver com dignidade
e em consonância com o nosso potencial:
"Angústia é a impossibilidade de se controlar uma situação."
As idéias, experiências e conclusões do cientista Henri Laborit,
divulgadas pelo filme, candidato ao Oscar de 1981 (melhor
roteiro), sobre os conflitos sociais, motivam análises mais
profundas: trata-se da luta pelo poder, uma luta que não
respeita os direitos dos outros e provoca conflitos. Revela-se a
guerra, então, como a ambição da propriedade sem restrições e
sem limites, por qualquer meio, inclusive o violento, agressivo.
"Meu tio da América" aponta a presença dos outros em nós: nós
somos os outros, que atuam sobre nós, que nos influenciam de um
modo ou de outro. Daí ser um filme atual e permanente -
universal. Os personagens são hodiernos: a atriz independente e
liberada que, depois de conquistar um alto funcionário público
(casado e pai de um casal de filhos menores), vê-se cuidando das
crises de angústia e úlcera que ele passa a ter; uma atriz que,
mais tarde, será enganada pela dramatização e astúcia (o amor?)
da esposa traída que a procura para lhe pedir que permita ter de
volta o seu marido, pois ela está sofrendo de uma doença fatal e
tem pouco tempo de vida...Assim, a amante o abandona e o casal
se reconcilia. Na sua solidão, tentando compreender o que
ocorrera em sua vida particular, a atriz - transformada por
necessidade em desenhista de modas - procura o seu ex-amante e a
família dele, descobrindo, finalmente, que fora ludibriada. E a
esposa, vitoriosa, ainda lhe diz que, se não fosse a sua ajuda
(dela, esposa), o marido não teria escrito o livro sobre o sol
que há muito planejava publicar.
Entre as cenas de experiências profundamente humanas,
intercalam-se experiências laboratoriais com ratinhos, quando
Laborit ilustra com muita ênfase os efeitos altamente perigosos
da angústia, do stress, enfim, da tensão que nos fere
intimamente e provoca úlceras, câncer, e muitos outros males e
distúrbios funcionais, a nosso organismo tão sensível e frágil.
Como não podemos reagir violentamente contra os outros que nos
desagradam, ou ferem, ou irritam ou nos contrariam, escolhemos,
erradamente, ser agressivos contra nós mesmos. O suicídio, por
conseguinte, é a agressão máxima que se comete.
Material publicitário de "Meu tio da América" apregoa:
"O que os ratos brancos podem nos ensinar sobre a condição
humana."
De acordo com as estatísticas mais recentes, o número de
suicidas vem aumentando assustadoramente, no mundo inteiro, em
todas as faixas etárias (até crianças e adolescentes se
angustiam a ponto de perderem a esperança!) e condições, mas a
idade dos que se suicidam está baixando!
A solução começa, é claro, na compreensão de que o problema
existe e que a angústia precisa ser considerada como um ponto de
partida para se encontrar uma saída positiva, humana, ainda que
se recorra a uma alternativa, adaptação, ou a um
redirecionamento de nossos interesses e objetivos. Daí a
importância da criatividade - cuja definição, aliás, é, segundo
cientistas da NASA que se pronunciaram a respeito, a capacidade
de se resolver problemas. Sobreviver é nossa obrigação para com
a vida que existe em nós. Precisamos realizar nosso potencial,
conservar nossa estrutura, enfrentando e vencendo os obstáculos,
sem deixar que a angústia nos domine, asfixie e nos leve à
destruição.
Um dos trechos mais importantes de "Meu tio da América" comenta
que, na hipótese de uma criança ser criada numa floresta, entre
os animais, sem nenhum contato com outro ser humano, ainda que
se desenvolvesse fisicamente, jamais seria um homem no sentido
exato da palavra, devido à ausência do contato humano, pois é a
comunicação com outras pessoas que possibilita a plena
realização do ser humano. (Ver o filme "O garoto selvagem", de
François Truffaut; ler meu comentário.)
Infelizmente, nem todos sabem apreciar essa obra-prima (a que
TODOS DEVERIAM ASSISTIR!, por ser um filme que nos ensina a
viver, nos faz refletir sobre nós mesmos, sobre a nossa
sobrevivência pessoal, sobre a nossa realização como indivíduos
inseridos em um contexto social...) do cinema contemporâneo
europeu. Isto porque a comunicação de massa de baixa qualidade e
o ritmo atual da vida nas metrópoles contribuem para a
uniformização do espectador num estado de embotamento
intelectual que se nega a pensar, raciocinar, refletir e,
sobretudo, aprender, quando isto exige uma certa dose de
concentração e esforço. O hábito de assistir a programas
repetitivos e fáceis, no conforto de seu lar, sem nenhum esforço
para selecionar outras produções de maior profundidade e de
nível mais elevado, realizadas inteligentemente sobre assuntos
sérios, filosóficos ou científicos.
Assim, uma janela cultural é fechada previamente pelo espectador
que não busca seu aperfeiçoamento intelectual através da
diversão caracterizada pela excelência de qualidade. Aos poucos,
ele vai perdendo a capacidade de ler com rapidez as legendas e
apreender o significado de um roteiro mais complexo, hermético
ou simbólico. Conseqüentemente, os que se acostumam à
mediocridade, talvez durmam ou se retirem da sala de projeção na
primeira parte do magistral "Meu tio da América", reclamando:
"- Não sabia que era documentário" , ignorando que os gêneros
artísticos nem sempre são rígidos ou limitados na sua
criatividade, alienados quanto à possibilidade do cinema
divulgar pensamentos, ensaios e relatórios científicos por meio
da ficção dramática.
Mesmo entre aqueles que assistem ao filme até o fim, ainda
encontramos os que, honestamente, perguntam:
"- Por que o título?! Não tem nada a ver!"
Mas é claro que tem a ver! A mensagem do "tio da América" está
explícita, em um determinado momento da película, quando o
público fica sabendo que era um parente citado porque decidira
se mudar para a América e continuava pobre. A família repetia a
história toda vez que alguém pensava em efetuar qualquer mudança
em sua vida, em seu empenho para resistir a qualquer
interferência na sua rotina tradicional. Todavia, a criança já
percebia que era um relato mal contado e que o tio, na certa,
enriquecera. O menino acreditava que o "tio da América" possuía
realmente um tesouro, escondido em algum lugar... e, como
acontece com todo tesouro, merecia ser procurado sem
esmorecimento. É bem verdade que, em se tratando de símbolos e
mensagens profundas, as leituras dos espectadores podem ser
diferentes, pessoais... o que se constitui, portanto, em mais
uma riqueza do filme. Quanta simbologia em um simples título! E
como é importante que um título leve à reflexão e se revele aos
poucos, devagar, gradualmente, desvendado lentamente,
esclarecido pela mente e pela sensibilidade maravilhosa do
coração humano!
Durante a projeção e ao término da sessão, percebemos que
precisamos rever "Meu tio da América" ... para que possamos nos
lembrar e compreender melhor os diálogos, a narração, as
imagens. E que mais se poderia exigir de um filme, quando
provoca, nos espectadores, a necessidade e o desejo de vê-lo
mais vezes?!
Amores Parisienses
"Tu és como o vento, que faz cantar o violino e tem o perfume
das rosas...(...) Palavras, palavras... (...) As palavras ternas
e doces saem da minha boca, mas nunca do meu coração."
"Amores Parisienses", o mais "recente" filme de Alain Resnais,
um dos nomes seminais do cinema francês inovador, mostra que o
diretor de "Hiroshima Meu Amor" (1959), "O ano passado em
Marienbad"( 1961), "Meu tio da América" (1980) e "Smoking/Non
Smoking" (1993) ainda faz, aos 80 anos, muito sucesso e por isso
continua sendo exibido nos cineclubes e no circuito comercial,
como atualmente em São Paulo. O êxito foi facilitado porque,
desta vez, sua obra não tem estruturas narrativas complexas, nem
script enigmático por suas visões psicológicas. Os atores Agnès
Jaoui e Jean-Pierre Bacri ( os roteiristas de "Smoking/Non
Smoking") escreveram o roteiro, cuja característica principal é
a fluidez, na descrição ágil das situações e reações humanas
facilmente reconhecíveis.
" - Você amaria um homem doido? Doido varrido por você? "
Homenageando, em seu contexto, a Cidade-Luz, e também, canções
populares contemporâneas (36 composições), o filme nos permite
um encontro com os anseios e problemas de pessoas da classe
média. Os seres humanos nem sempre dizem a verdade ou, nem
sempre as suas palavras refletem o que, na verdade, está
acontecendo em seu íntimo ou em sua vida. E, com freqüência, se
enganam na interpretação dos próprios sentimentos, deixando-se
iludir, igualmente, com as aparências enganadoras do próximo.
Carro e hotel caros seriam indícios de sucesso profissional e
financeiro...Camille mostra-se encantada, ao ver a Guarda
Republicana desfilar: "o uniforme valoriza!"
" - Eu não poderia viver sem você...você sabia?
- Não, eu não sabia."
Obra realista, engraçada e romântica. Nela, é possível enxergar
as três dimensões da realidade: passado, presente, o futuro dos
relacionamentos.
"Mascarar e trapacear para não sofrer muito." (Claude, sem
conseguir dialogar com a esposa Odile, interpretada pela
graciosa Sabine Azéma, de "Smoking/Non Smoking.) Ela reconhece
querer se mudar para um apartamento maior, num bairro chique,
mesmo que isso signifique uma dívida considerável. A todos,
trata com cortesia, exceto seu marido...embora ele até ajude a
mulher em algumas tarefas domésticas. Com seus amigos - o esposo
observa - mostra-se tão atenciosa que até parece estar flertando
com eles!
" - Se não digo nada, eu observo tudo. Eu me reprimo..."
E ocorre, algumas vezes, que Odile nem demonstra prestar atenção
às perguntas de Claude: não responde, fala de outro assunto,
comporta-se quase com indiferença.
"Você não quer que eu dê minha opinião, Odile! Quer que eu
concorde com você. E fique feliz em concordar!" ( E tudo que o
marido lhe sugeria era que pensassem um pouco mais antes de
investir em um novo imóvel...)
"Amores Parisienses" (On connait la chanson - co-produção:
França, Suíça, Inglaterra - 1997 - cor- dolby digital - 120
min.-35mm) é, de fato, o filme mais leve e divertido do
octogenário Alain Resnais, um musical diferente porque não tem
números de dança, mas reúne uma coletânea de canções francesas
que revelam circunstâncias, expressam emoções e pensamentos,
substituem diálogos dos personagens, urbanos e bem atuais. Os
versos manifestam tanto a fantasia, o sonho, como a realidade de
suas vidas, nas relações familiares e sociais, afetivas e
profissionais. Diálogos interessantes e canções muito bem
escolhidas para as situações e os personagens - tudo se encaixa,
tudo se mostra apropriado ao contexto da obra - que eficiência!
Quando se é competente, eis o resultado: obra de qualidade!
" Não se pode ser muito sincero. É preciso ser um pouco falso. "
No entanto, o pai de Odile e Camille é todo sinceridade e
tranqüilidade, inserindo-se nas circunstâncias como um
personagem que afirma sua presença, nos poucos momentos em que
aparece. Uma simpatia de pessoa! Com a sua sabedoria pragmática,
diz a Odile não entender um preço tão baixo para aquele
apartamento enorme... Quando Camille não se sente bem, o pai
logo quer saber se ela se alimentou, que tipo de alimento, ou se
deixou de comer. Lembra, com toda a sua simplicidade, que os
atletas se alimentam de massas e bananas, antes das competições.
Viajou seis horas para ouvir a defesa de tese de Camille,
entusiasmando-se com as observações elogiosas dos examinadores.
Apesar de reconhecer, sem rodeios nem acanhamento, que ele nada
entende do assunto, entusiasma-se: "Bravo, minha filha!"
" - Vai começar...não consigo relaxar..."
"(...) Tenho a impressão de que vou cair, morrer aqui mesmo.
(...) Sinto um peso de duas toneladas e meio no peito..."
E seu pai, contemplando-a carinhosamente:
" - Isso não é nada. Com o tempo, vai passar. "
Os adultos às vezes se agridem com palavras ou simplesmente agem
com descortesia. Quando refletem sobre esses erros, um pedido de
desculpas demonstra que chegaram à conclusão de que fizeram mal;
esse reconhecimento é bom para a convivência. Como também
funciona, ao se fazer uma besteira, reconhecer que cometemos um
erro grave, precisando correr para os braços de quem pode nos
oferecer carinho, apoio, até nos defender!
Comédia dramática existencial, com romance e humor refinado, "
Amores Parisienses " apresenta-se como se fosse um teatro lírico
contemporâneo, uma típica opereta para os dias de hoje. Diálogos
comuns alternam-se com as cenas em que o elenco "canta" com as
vozes de Maurice Chevalier, Edith Piaf, Dalida e Alain Delon,
entre muitos outros. Jane Birkin, porém, dubla a si mesma. O
filme partiu de uma idéia do dramaturgo britânico Dennis Potter
(1935-1994), a quem "Amores Parisienses" é dedicado; em suas
obras, os personagens interpretavam, a todo momento, músicas
populares. O acaso e as coincidências têm papel fundamental nos
acontecimentos narrados pelo roteiro, como na existência de
todos nós, se refletirmos sobre essas surpresas tão comuns...
Mais uma obra de Alain Resnais que merece ser vista e apreciada
várias vezes! Uma jóia! E inteiramente rodada em Paris.
" Ele te acaricia com os olhos."
Original e criativo, além de agradável (desde a apresentação dos
créditos iniciais), reproduz, em suas primeiras cenas, o fato do
oficial nazista Von Choltitz desobedecer, na França ocupada, às
ordens explícitas de Hitler para destruir Paris. Explosivos já
tinham sido colocados em todas as pontes da cidade, mas o
militar tomou decisão corajosa. No filme, a voz de Josephine
Baker sai, sincronizada, provocando risos na platéia, dos lábios
de Von Choltitz, "cantando " o clássico, na versão francesa, em
que declara , como seus dois amores, o seu país e Paris ( "Two
Loves Have I "): "Esses dois amores encantam o meu coração."
(...)"- Ser ajuizado é qualidade? pergunta Nicolas à sua amiga
Odile, que lhe fala sobre o marido.
- Sim, é qualidade. "
Vencedor de sete César 98, entre os quais o prêmio de melhor
filme, "Amores Parisienses" poderia ser previamente explicado
aos espectadores não-avisados como obra realizada na linha de
trabalho da comédia musical, dramática e romântica de Woody
Allen, "Todos Dizem Eu Te Amo", considerando-se que o público
jovem, e mesmo os adultos, levados pelo título em português,
reagem de forma negativa, diante da surpresa cinematográfica.
Constatamos essa reação da platéia, em diversas sessões. A
informação sobre o gênero, mais importante que a sinopse,
estabeleceria uma comunicação maior com o público (
recomendação: a partir de 14 anos).
" Ter um bom amigo é o que há de melhor no mundo" - reconhecem
Nicolas e Simon - este, apaixonado por Camille ( a co-roteirista
de " Amores Parisienses ", Agnès Jaoui), guia turística e
pesquisadora universitária.
" - Passei a ser seu confidente: nada de sexo, só ouvidos."
A possibilidade do riso "nas tristezas. Quando se tem um bom
amigo."
Uma foto da família de Nicolas, mostrada a Simon em cena de
confidências, já tinha provocado anteriormente, da parte de
Odile, a observação de que se assemelharia a uma publicidade de
chicória... Simon, mesmo nas horas de trabalho, não tira Camille
de seu pensamento, vivenciando uma contínua "vertigem do amor".
Na sua presença, desdobra-se em atenções sinceras, na esperança
apaixonada de que ela compreenda que têm afinidades de
interesses. Camille lhe confessa estar trabalhando como " louca
", preparando-se para a defesa da tese dali a três dias e
continuando suas outras atividades.
As contradições da vida universitária são, também, um dos temas
de " Amores Parisienses", que expõe os projetos aparentemente
sem utilidade próxima, sobre os quais poucos se interessam e,
ainda assim, essas teses são publicadas! E quem as estudou e
defendeu também parece não saber o que fazer dessas pesquisas no
futuro...
"As canções, que funcionam como um coro, surgem para comentar a
ação ou sublinhar o estado de espírito dos personagens,
envolvidos em relações desajustadas em uma Paris romântica." São
situações de amor, intrigas e algumas revelações sobre as
pessoas que desfilam na tela, ante nossos olhos conduzidos por
diálogos, melodias, imagens e sons a comporem a narrativa. Esta,
inclui cenas absolutamente corriqueiras nas metrópoles, como
grupos de turistas, barulho do trânsito e de construções,
atropelamentos sem que o motorista socorra a vítima... E ninguém
anotou a placa do carro!
Os personagens em primeiro plano, em cenários interiores, e a
visão da rua, através de balcões e varandas, ou janelas, por
onde se vê pessoas e veículos se movimentando, nas calçadas e
nas ruas, o que imprime uma característica realista, "ao vivo".
Ou durante a festa, alguns convidados conversam, desfocados,
compondo o cenário de fundo para os protagonistas. Na estação
ferroviária, barulhenta e agitada, a esposa de Nicolas tenta
dialogar com o marido. Na maternidade, não vemos os bebês, mas
ouvimos a sua "canção" exclusiva - o choro quase em coro! - a
invadir os corredor. E a bela paisagem contemplada, do
apartamento novo de Odile e Claude, nas cenas noturnas da festa:
a igreja Sacré-Coeur de Montmartre, a silhueta inconfundível da
Torre Eiffel, iluminadas e iluminando quem sabe admirá-las!
"Gostaria que a terra parasse, para eu descer."
"De nosso amor ardente restariam apenas cinzas" - canta (e atua)
Jane Birkin, com muita sensibilidade.
Angustiada ao extremo, pede que o marido lhe fale a verdade...
Afirma que prefere a verdade:
- Diga "não consigo", "as coisas não vão bem..."
Ela acredita que esconder a realidade nada resolve, complica,
multiplica os problemas, impedindo a sua solução.
" - Por que você chora assim, constantemente?"
Odile, Madame Lalande, é empresária e muito carinhosa com sua
irmã Camille, por quem se preocupa sinceramente. Odile, Camille,
Claude e Simon não fumam, nem a esposa de Nicolas (Jane Birkin)
- os outros, não largam o cigarro, o que chega a incomodar os
espectadores não-fumantes, entre os quais eu me incluo. Parece
até que sentimos o cheiro desagradável a nos atacar olhos,
narinas e garganta! Enquanto a anfitriã arruma as travessas de
salgados e doces, na cozinha, Nicolas fuma sem parar,
conversando ao lado dela... e o cigarro aceso pairando acima da
mesa, como espada de Dâmocles contemporânea, ameaçando os pobres
mortais não-fumantes e seus alimentos supostamente limpos e
saudáveis.
Lambert Wilson, dono da imobiliária que era de seu pai, é o galã
da história: o jovem Marc (será que encontrou e bebeu da fonte
da juventude?!), elegantemente vestido, cortês para uns,
agressivo e indelicado com o seu empregado mais antigo e culto
(Simon). Constantemente trazendo flores para oferecer, Marc
encanta as mulheres. Sua capacidade de sedução traz resultados
rápidos, nos mínimos detalhes. Seu resfriado é confundido com o
que seriam lágrimas de uma suposta decepção amorosa,
beneficiando-se, assim, de uma falsa imagem de homem carente de
amor...ao ser observado por quem deveria se mostrar mais
inteligente! Marc usa e abusa de clichês, em seus diálogos
sociais, comerciais e sentimentais. Mas, tão elegantemente
vestido, o efeito de conquista é imediato! Uma de "suas" canções
bem define seu personagem, que "ama todas as garotas", sejam
quais forem e onde quer que estiverem.
(...)"Quando se perde a cabeça, perde-se muito mais!"
Destaques: produção, direção, interpretação, roteiro; temas,
personagens e diálogos; trilha sonora (mixagem, sonoplastia);
fotografia, cenografia (cenários interiores e cenas externas) e
objetos de cena; penteados e maquiagem; figurinos (Sabine Azéma
veste Christian Lacroix; Lambert Wilson usa Christian Dior
Monsieur); apresentação dos créditos iniciais e dos créditos
finais. Filme sem cenas de violência, baixarias ou qualquer tipo
de apelação, nem sensacionalismo. Sem linguagem chula, nem
gestos vulgares. Uma preciosidade do cinema!
"- Por que (recomeçar)?
- Porque eu esperei por você muito tempo."
Entre os intérpretes das canções de "Amores Parisienses ", além
dos que foram citados, estão: Josephine Baker; Gilbert Bécaud;
Charles Aznavour; Jacques Dutronc;Sylvie Vartan; Johnny Halliday;
Serge Lama; Claude François; France Gall; Sheila; Albert Préjean;
Koval; Michel Sardou; Téléphone; Simone Simon; Dranem; Alain
Bashung; Pierre Perret; Henn Garat; e Julien Leclerc ...
" Com o tempo, tudo passa. Esquecemos o rosto, esquecemos a voz.
Quando o coração bate mais forte, não vale a pena ir mais
longe."
E vejamos o que escreveram alguns críticos:
"Uma sinfonia" (Adriano Schwartz); "a vida a cantar" (Amir
Labaki); "diversão de mestre" (Christian Petermann); "música no
coração" (Inácio Araújo); "o discreto charme da burguesia" (João
Leiva Filho); "Resnais bem-humorado" (Suzana Amaral).
Outra temática de " Amores Parisienses ": a questão do
profissionalismo entre os corretores imobiliários; as práticas
comuns que indicam falta de ética e, portanto, seriam
inaceitáveis e condenáveis; as omissões...essas informações
caladas que, na verdade, são mentiras a revelarem desonestidades
e prejuízos para os clientes.
" - Sim, no trabalho de corretor, diz-se qualquer coisa."
O roteiro apresenta situações em que os casais têm dificuldades
na interpretação das atitudes e palavras de seus cônjuges. Ou
"vêem" demais ou de menos! Ouvem e lembram o que deveriam
esquecer, para seu próprio
bem...Ou deixam de se voltar para o outro, de ouvidos atentos,
como acontece entre os amigos de verdade! Cena de jantar em
restaurante ilustra esse desencontro. No local, ouvimos também o
desabafo de jovem separada...Ela chega a confessar, à amiga, que
até se sente mal, ao contemplar toda aquela " felicidade " de
Claude e Odile, em mesa próxima.
O problema do desemprego revela-se em sua face comum - a procura
durante anos, aainda que a pessoa tenha um bom curriculum. As
histórias se parecem...
Para Odile, o que ela descumpriu, como empresária, pode ser
desculpado com a frase:
" Nada é certo, enquanto não estiver no papel!"
Otimista, pragmática em alguns assuntos, carinhosa com a irmã
Camille, que precisa ser interrompida ou perturbada em seu
trabalho de guia turística, para prestar atenção em quem somente
tem olhos para ela. Acontece que tanto Camille quanto Nicolas
enfrentam um problema de saúde real, embora quem não sofra desse
mal tenda a minimizá-lo. Ambos procuram médicos diversos,
entretanto, talvez porque não sejam sinceros nas consultas,
ouvem diagnósticos diferentes, conselhos contraditórios. Eles
mesmos não reconhecem seu estado depressivo, então, o tratamento
demora a fazer parte de seu cotidiano. Como espectadores,
refletimos, mas não deixamos de rir com o roteiro desse filme,
no qual a realidade é abordada com um talento especial e, mesmo
ao descrever um problema sério como a depressão, o faz de modo
divertido, assumindo um tom absurdo e autêntico de tragicomédia
cotidiana. Hipoglicemia, espasmofilia tornam-se assuntos
corriqueiros nos encontros sociais.
"- E todos os remédios que toma! Para isso e para aquilo...Eu
nunca tomo remédios!" (...)
" - O médico disse que ela está bem. Não tem nada de grave...só
um problema de nervos. Nada para se preocupar."
O médico jovem e alegre recebe Nicolas em consultório onde há um
grande aquário. (Atenção para os versos detalhistas da canção "
Je suis malade " - Estou doente.)
Outro médico, de mais idade, com a sua experiência tenta
tranqüilizá-lo:
"Seu coração ainda vai durar bastante tempo. (...) Relaxe, ande
de bicicleta, não se preocupe tanto com as palpitações... ou vai
adquirir uma úlcera. Deixe seu coração palpitar...é natural."
A médica irritada com a prescrição de um colega que
anteriormente tratou de Nicolas dá consultas em ambiente
ruidoso, enervante: através de janela perto da mesa onde
trabalha, sons estrondosos de máquinas de construção...
Nicolas prefere ter depressão, a sofrer de câncer ou outras
doenças.
" - E quanto tempo dura uma depressão?
- A minha durou quatro anos.
- Quatro anos?"
Esse diálogo termina em cena de ternura e romantismo tranqüilo,
próprio das pessoas amadurecidas. Momento em que se aceita por
meio da reflexão, assumindo uma sinceridade íntima, o poder do
sentimento afetivo, que deve acompanhar o tratamento médico da
depressão tão comum entre nós...
Em muitas circunstâncias, a verdade, de fato, incomoda bastante.
Aos pacientes, aos cônjuges, aos amigos e parentes, aos colegas
de trabalho. Daí a dificuldade que temos em aceitá-la em nosso
íntimo, muito menos verbalizá-la.
Assim como participamos da animação de alguns personagens, em
seus preparativos para a festa, constatamos que a reunião social
também serviu de ocasião para os desagradáveis comentários, as
fofocas, intrigas e inverdades. Há pessoas que, sem a menor
cerimônia, tiram alimentos dos pratos de outrem! Ou se mostram
descorteses, maliciosos.
O silêncio, a bagunça generalizada nos dirão que aquela festa
terminou, servindo de cenário para alguém que entrará em cena e,
olhando diretamente para a lente da câmera, isto é, olhando para
nós, espectadores, vai nos fazer uma pergunta perfeita para
encerrar a "nossa festa"... esse filme que Alain Resnais fez
para nós!
Theresa Catharina de Góes Campos
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