DIÁRIOS DE MOTOCICLETA
Diários de Motocicleta: Um olhar de ternura
Ontem fui ao dentista. Na ante-sala li nos jornais que o filme
do Walter Salles – Diários de Motocicleta havia recebido 13
minutos de aplausos em exibição no Festival de Cannes.
Maravilha. Tudo sobre o Che Guevara atiça curiosidade. A
ansiedade para ver o filme foi tanta que desconsiderei a
possibilidade de compartilhar a ida ao cinema com minha mulher
Vera ou com meus filhos. Saí do dentista e entrei na sala de
cinema. Afinal era no mesmo “shopping”, ingressos em promoção e
eu não tinha que dar aulas naquela noite.
O filme é grandioso. A fotografia é bonita. Os caminhos, as
estradas, tortuosos e cheios de surpresas, os lagos andinos, a
neve em Bariloche, a cordilheira... tomadas de uma plasticidade
cativante... Quando Che e seu amigo Alberto chegam ao Peru, o
filme cresce mais ainda e as cenas feitas em Cuzco e Machu
Pitchu são emblemáticas. Logo em seguida uma perfeita
reconstituição de Lima na década de 50, com carros de época,
etc. A reconstituição, nas tomadas no Chile, também foi muito
bem feita...$realmente gastaram-se muitos pesos, soles e doláres..”Thank
you Mr. Robert Redford”.
O ápice do filme é quando eles chegam em San Pablo, colônia de
hansenianos na Amazônia peruana. Nós, amazonenses, sabemos que a
lepra é ainda uma realidade cruel na região. Tão cruel quanto o
preconceito, este bíblico e milenar, e a falta de políticas
públicas e de saúde mais eficazes para o tratamento e o combate
de um mal que tem cura!
Che e seu grande amigo recusam as luvas que estigmatizam,
quebram regras e tabus impostos pelas freiras que administram a
colônia. Fazem sua parte de médicos humanistas, comprometidos
com um ideal socialista de práxis. Aniversário de Che. Fazem uma
festa e depois dos parabéns ele vê a outra margem do rio onde
ficam os hansenianos e deseja comemorar o seu aniversário com
eles. Não suporta ver a segregação. De fato, aquele apartheid
entre os doentes e sãos, com um caudaloso rio amazônico como
barreira, é constrangedor. Neste momento, temos a melhor cena do
filme. Numa atitude suicida, Che se atira naquele imenso rio,
fundo, com correntezas, à noite, cheio de perigos. Há gritarias
de ambos os lados. È fantástico. Eu sabia que ele não morreria
ali porque ainda tinha que fazer a revolução em Cuba e voltar, e
todos sabem o resto....Mas nunca fiquei tão aflito com uma cena
de cinema... uma coisa!
Quando Che finalmente chega à margem onde moram os hansenianos e
é carregado e socorrido por eles eu vi, nos olhos dos doentes um
olhar de ternura., endurecido pelo sofrimento, claro. O mesmo
olhar que vi há um mês atrás (exatamente em 22 de abril deste
ano) nos olhos dos hansenianos da colônia Antonio Aleixo em
Manaus. A palavra ternura está sempre ligada ao Che, talvez por
aquele pôster com a frase famosa... Mas se Walter Salles teve a
intenção de passar ternura, conseguiu.
Dona Amine Lindoso foi primeira dama do Amazonas de 1979 a 1982.
Ela visitava a colônia semanalmente. Também nunca foi vista de
luvas. Providenciou e conseguiu atendimento médico,
ambulatorial, escola e distribuiu muito carinho e atenção. O
espanto da sociedade manauara era o mesmo das freiras em relação
aos dois médicos argentinos visitantes na Colônia de San Pablo.
Como disse Che, no filme, é muita injustiça ! E haja
preconceito!
Pois bem, estive na colônia Antonio Aleixo mês passado. O
Governo do Amazonas construiu um conjunto habitacional que se
chama Amine Lindoso. A inauguração contou com a presença do
governador do Amazonas, Eduardo Braga e D. Sandra, Presidente
Lula e D. Marisa e demais autoridades. D. Amine estava lá com
seus quase 80 anos.
Hoje não existe mais cordão de isolamento. É uma cerca de
isolamento, necessária à segurança do presidente. Após
solenidade, discursos, placas, etc. a comitiva presidencial
parte. Fiquei impressionado com a rapidez com que se removeu a
tal “cerca de isolamento”. D. Amine e familiares espera a
comitiva deixar o local.. e aí eles vieram, vários,
cumprimentá-la. Queriam vê-la novamente. Alguns bastante
mutilados. Fiquei especialmente tocado com uma senhora de
cadeira de rodas, com sinais bastante evidentes de mutilações,
porém muito vaidosa, com uma flor no cabelo. Queria repetir
versos ditos a D. Amine há mais de 20 anos. E assim o fez. Acho
que D. Amine se emocionou mais com ela do que com o abraço do
Lula e o carinho de D. Marisa. Eles vieram demonstrar aquele
olhar de ternura.... o mesmo olhar que Walter Salles captou nos
hansenianos de San Pablo. Aliás, alguns devem ter mesmo vindo de
lá..para Manaus...Foi tudo muito bonito, muito comovente..
Voltando ao filme de Walter Salles... eu gostei muito... é um
ótimo filme..poderia ter sido produzido aqui no Brasil,
patrocinado pela PETROBRAS, do qual faço parte da “força de
trabalho” com muito orgulho... mas sabe como é... Che
Guevara...comunismo...essas coisas não devem agradar a todos os
acionistas...O filme provavelmente foi muito caro....”muchas
gracias Robert Redford”
Pedro Lucas Lindoso
Brasília, maio de 2004
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